terça-feira, 7 de abril de 2015

Quem se deixa dirigir por verdades absolutas não se deixa incomodar por razões*

Recentemente meu filho me mostrou um diálogo realizado no grupo de whatsapp que congrega colegas do seu curso na universidade. O tema em questão era a proposta de redução da maioridade penal. O que chamava atenção era o caráter extremamente conservador dos argumentos, algumas vezes acompanhados de apologia à violência contra menores. Os participantes do dito diálogo devem estar na faixa dos 18 a 21 anos. Por que pessoas tão jovens aderem cada vez com maior facilidade a teses de cunho autoritário? Evidentemente não há uma resposta única a essa questão tão complexa. Vou arriscar algumas.

Uma das características desse momento histórico que vivemos - e não me refiro somente ao Brasil - é de afirmação de um pensamento que criminaliza a política. É o que alguns denominam de a despolitização da política. Segundo esse ponto de vista, a política é compreendida como algo suja, corrupta e que só causa males ao país. Daí alguns defenderem o fechamento do parlamento, a volta da ditadura ou a extinção de partidos políticos. A política, sob essa perspectiva, é reduzida à sua dimensão institucional, marcadamente as eleições em todos os níveis. Nesse caso, o próprio ser humano é esvaziado, já que este deixa de existir como ser essencialmente político e passa a ser encarado como um ente idealizado, abstrato, irreal, que pode viver em sociedade sem o exercício da política. Para a afirmação desta ideia na sociedade os meios de comunicação sob controle de oligopólios batem diuturnamente na tecla de que o Estado e seus agentes públicos são corruptos por natureza, e de que a luta social desencadeada por partidos de esquerda, movimentos sociais, grupos pastorais, ONGs e outros é realizada somente por conta de interesses mesquinhos desses "nada representativos" segmentos da sociedade. Tal ideia difundida ininterruptamente vai ganhando adeptos e agora irrompem em mobilizações fascistas. Ora, quem verdadeiramente se beneficia da despolitização da política? No Brasil, em vez de debatermos a mudança estrutural de nosso modelo de desenvolvimento - altamente concentrador, promotor de desigualdades e da degradação ambiental em larga escala - e de nossa representação política - onde as grandes corporações empresariais-financeiras é que verdadeiramente elegem a maioria das bancadas parlamentares e dos membros dos executivos -, onde o judiciário é o poder da República que se mantém impermeável à transparência de seus atos e ao controle social, bem como onde em vez de liberdade de imprensa temos somente a liberdade das empresas de comunicação, é mais fácil reduzir todos nossos males a esse ou aquele parlamentar, a esse ou aquele governante, a esse ou aquele partido. Nunca é demais lembrar que alguns dos piores regimes autoritários do século XX - o nazismo e o fascismo - conquistaram grandes massas de apoiadores a partir do uso inteligente do discurso criminalizador da política e de culpabilização de determinados segmentos sociais pelos males das nações (judeus, comunistas, socialistas etc.). Agora são os negros, os latinos, o islã, os árabes, os africanos, os menores de 16 anos etc.


A desconstrução da democracia é outro elemento a ser considerado no debate aqui proposto. De um lado, a democracia brasileira sequer foi capaz de nos fazer romper com determinadas estruturas herdadas de um passado não tão longínquo: a concentração da terra e da renda, o monopólio da informação e o controle da representação política. As disputas eleitorais no Brasil, por exemplo, parecem ter se tornado meras formalidades dado que o tripé citado acima permanece incólume. E agora, com um Congresso Nacional ainda mais conservador, essa situação tende a se agravar. De outro, presenciamos um esvaziamento político de instrumentos importantes de participação e de controle social (conselhos, conferências e outros), aliado ao fato de que há um fosso crescente entre representantes e representados(as), fazendo com que os últimos se sintam alijados dos debates e das decisões e, em consequência, desinteressados pela política; situação agravada com o pipocar constante de novos escândalos de corrupção. Apesar de não concordar inteiramente com a conclusão a que chega, vale citar o que escreveu recentemente o novo ministro da Educação, o filósofo Renato Janine Ribeiro, sobre a questão da representação política no Brasil:

Representar não é só um expediente prático para nos dispensar, nós eleitores, da chatice que é ir a Brasília. Benjamin Constant, em 1819, fez o grande elogio liberal da representação: pobres fazem tudo pessoalmente, homens ricos têm quem o faça por eles. Representação é um conforto para o representado. O deputado, e até mesmo o ministro, seriam como despachantes. Antes fosse assim! Ele errou, em seu otimismo. O eleito não é um funcionário prestativo que faz o que lhe pedimos. Ele porta um cheque em branco que usa a seu arbítrio. Alguém votou no PT para ter o mensalão? No PSDB para ter o escândalo dos trens paulistas? Claro que não.
Que alternativas temos? Talvez só paliativas. Aumentar a transparência, diminuir a burocracia, ativar o prazer de estar com o outro... Um misto de medidas políticas e administrativas e até mesmo de terapia e autoajuda (Artigo Crítica à representação, Revista Filosofia, n° 104).
No Brasil, o que as elites dirigentes pretendem é estabelecer uma espécie de democracia pelo consumo. Portanto, algo perfeitamente assimilável pelo e através do mercado. Em si mesma tal perspectiva é excludente, pois jamais todos(as) teremos as mesmas condições de consumo numa sociedade capitalista, fundada justamente na reprodução infindável de desigualdades de diferentes tipos. E nem o planeta suportará a ampliação exponencial do consumo.

Outra característica é a metódica utilização do medo como arma de enfraquecimento e/ou desmantelamento da luta social, das opiniões divergentes e da oposição política. Com relação a isto talvez o melhor exemplo seja a guerra ao terror proclamada pelo ex-presidente Bush após os atentados contra as torres gêmeas, em setembro de 2001. Utilizando-se com maestria da comoção mundial, e particularmente dos estadunidenses, o establishment - em particular os falcões militares - dos Estados Unidos lançaram-se com ferocidade contra o Iraque sob mentirosos argumentos de que aquele país possuía armas de destruição em massa. Mais uma vez a mídia oligopolizada exerceu papel fundamental para angariar apoio mundial à estratégia de ataques preventivos presente na nova doutrina de segurança nacional do Tio Sam. No Brasil, um exemplo importante é o debate sobre a redução da maioridade penal. Em que pese todos os indicadores demonstrarem que o número de crimes cometidos por jovens abaixo de 18 anos ser muito pequeno, percentualmente insignificantes - como no caso do estado de São Paulo -, estes se tornaram o grande inimigo a ser combatido a fim de garantir "o bem estar e a segurança da sociedade". O medo empregado para impedir o debate sobre os verdadeiros problemas da criminalidade, e impedir a identificação dos responsáveis pela violência que assola as cidades brasileiras - entre as quais a corrupção, a sonegação, a concentração de renda, o racismo, o patriarcado, a despolitização da política, o modelo de desenvolvimento etc.

 Vivemos ainda numa democracia capenga que, entre outras consequências negativas, incute e fortalece nos jovens a ideia de que a política não leva a nada de bom. Por conseguinte, tornam-se alvos relativamente fáceis de setores avessos à própria democracia. E a forma como o debate acerca da maioridade penal foi realizada pelos amigos do meu filho é apenas a ponta do iceberg de um processo mais profundo e perigoso, pois relega valores fundamentais como a solidariedade e o direito à vida a um plano secundário, além de colocar em xeque o nosso sentido de humanidade.

* O título dessa postagem foi retirada do interessante artigo intitulado Ideologia para quem precisa..., do professor Flávio Paranhos (Revista Filosofia, n° 104).

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