quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

É logo ali.

Estamos vivenciando um momento bastante delicado. Isto porque ele se materializa enquanto um ponto de bifurcação histórico, daqueles em que as incertezas dominam o cenário. Há tantas possibilidades em aberto que fica difícil apreender adequadamente as consequências das decisões que estão sendo tomadas agora. Há aqui uma primeira questão a ser abordada: a política vem sendo diuturnamente atacada de diferentes formas justamente quando ela é mais necessária diante dos enormes desafios que se apresentam. A política aqui entendida como uma das ações humanas da mais alta relevância.

despolitização da política levada a cabo diuturnamente ao redor do planeta agrega, por motivos diversos, (i) a extrema direita e sua tentativa de impor regimes autoritários fundados no medo, na violência, no ódio, no individualismo exacerbado acoplado à destruição da perspectiva da universalização de direitos, bem como no completo repúdio à democracia e suas instituições, turbinadas pelo manuseio dos algoritmos e da inteligência artificial para atingir tal finalidade; (ii) os conglomerados midiáticos e segmentos encastelados nos aparelhos de Estado no uso do lawfare[1], da mentira e da manipulação como estratégia de destruição de adversários; (iii) setores religiosos conservadores que em nome de um suposto deus justificam a guerra, o armamentismo, os ataques a grupos minoritários, a violência contra mulheres, negros(as) e integrantes de distintas periferias (sejam moradoras de bairros populares, população de rua e/ou de países e regiões marginais do capitalismo), bem como demonizam as esquerdas e seus programas partidários; (iv) atores sociais diversos, inclusive do "nosso campo", comprometidos com a implementação de soluções de mercado às múltiplas crises porque passam nossas sociedades, que abrange desde a ideologia do empreendedorismo em substituição paulatina à noção de cidadania até às "alternativas" para as crises climática/ambiental, como o mercado de carbono. Em variados momentos do debate sobre as mudanças climáticas, por exemplo, a crença de que a tecnologia - eficiente e neutra - evitará o pior se apresenta concorrendo com as soluções pela política.

As bifurcações que se apresentam são fundamentalmente de três ordens. A primeira diz respeito justamente às crises climática e ambiental. As mudanças no clima demonstram de maneira muitas vezes trágicas que o capitalismo, este um dos resultados históricos das ações/decisões humanas, nos colocou diante da possibilidade concreta de desaparecermos enquanto espécie da face da Terra. Nossa desgraça está no fato de que o sistema capitalista não demonstra qualquer capacidade de efetivar mudanças estruturais que revertam tal situação. Pelo contrário, o que "os donos do mundo" buscam a todo custo é encontrar formas de lucrar com essas crises. Os acordos que estão sendo costurados seguem de alguma forma por esse caminho. Nossa perspectiva conflita com tal trilha e nos leva a parodiar uma frase que ficou famosa e dizermos que o problema não é a molécula de carbono e sim o sistema, idiota! Não consigo ver saídas duradouras nos marcos do sistema. A segunda, é a possibilidade de uma hecatombe (massacre de um grande número de pessoas, mortandade, carnificina) nuclear. Nunca é demais lembrar que a guerra sempre foi usual para a recomposição/redefinição dos instrumentos e das formas de exercício de poder. Mais uma vez nossa espécie estaria em risco de desaparecimento, assim como ocorreu com outras espécies ao longo da história do nosso planeta. A terceira está relacionada ao rearranjo geopolítico mundial. Guerras na Ucrânia e na Palestina, disputa feroz por recursos energéticos, BRICS, aliança estratégica entre China e Rússia, desdolarização das economias, Rota da Seda, crise da OTAN, ascensão da extrema direita, crise da democracia liberal e de suas instituições e outros eventos provocam abalos nas estruturas que antes se mostravam sólidas. Essa miscelânea de processos imbricados uns nos outros também tem potencial para provocar conflitos de grande magnitude.
A tendência que se apresenta com forte possibilidade é o da generalização das crises e de confrontos em larga escala. Porém, tendência significa a disposição por um determinado caminho. Não é algo taxativo. Aí é que entra a política. As decisões que tomarmos agora é que vão confirmar ou não essa tendência. Se depender dos "senhores da guerra" é a trilha predominante. A questão é: nós os/as anticapitalistas, antipatriarcais e antirracistas acumularemos força suficiente para impormos alterações de rotas que efetivem outras tendências?


[1] Lawfare é uma palavra-valise introduzida nos anos 1970 e que originalmente se refere a uma forma de guerra na qual o direito é usado como arma. Basicamente, seria o emprego de manobras jurídico-legais como substituto de força armada, visando alcançar determinados objetivos políticos. Vide o caso da Lava-Jato no Brasil ou das ações judiciais que poderosos grupos empresariais empregam para criminalizar movimentos sociais e/ou suas lideranças.


terça-feira, 4 de outubro de 2022

Sobre cristãos que não acreditam em Deus.

Nós cristãos e cristãs aprendemos desde cedo que Deus é Onipotente, Onisciente e Onipresente. Isto é, não há nada ou ninguém mais poderoso que Deus (Onipotente). Ele tem conhecimento infinito sobre todas as coisas (Onisciente). E que Deus se encontra em todos os lugares: na natureza, no universo e dentro de cada um e cada uma de nós (Onipresente). Além disso, acreditamos que em algum momento seremos julgados pelas nossas ações e omissões, pelo bem e pelos males que fazemos em relação a nós mesmos, às demais pessoas e a tudo à nossa volta. Entretanto, não é isso que uma parcela significativa de cristãos e cristãs parece acreditar.

Em primeiro lugar, há aqueles/aquelas que colocam o demônio tão poderoso quanto Deus. Diariamente invocam o demônio nos cultos e às vezes falam mais o nome dele do que o do próprio Deus nas suas pregações. Destinam ao Belzebu enormes poderes a fim de incutir o medo e o terror nas mentes de seus seguidores. A vida passa a ser orientada não pela confiança no Deus Onipotente, mas no medo de cair nas garras poderosas do diabo. Dessa forma, é Satanás que prevalece como referência cotidiana e não um Deus Todo Poderoso que nos livra de todo mal.

Em segundo lugar, tais cristãos/cristãs não acreditam realmente no julgamento divino. Daí darem a si próprios(as) o poder de julgar e decidir quem vai ou não ao "paraíso". Tomam o lugar de Deus. Lançam maldições aos/às que consideram pecadores(as), se regozijam por já estarem entre os/as eleitos(as), assumem o papel de juízes/juízas e determinam o destino de cada um(a). É mais um recurso dos/das cristãos/cristãs que não acreditam em Deus para exercer poder de influência sobre determinado rebanho.

Em terceiro, ignoram completamente os mandamentos divinos. No Brasil percebemos nos últimos anos que muitos(as) cristãos/cristãs demonstram mais amor aos fuzis, às metralhadoras e às pistolas do que à Deus sobre todas as coisas. Usam a mentira como arma política e como base de suas pregações, reproduzindo-as em larga escala por whatsapp e outros meios. Em vez de A verdade vos libertará, proclamada por Jesus, o lema desses(as) cristãos/cristãs é A mentira nos beneficiará. Cultuam a morte, defendem a pena de morte e afirmam que Jesus andaria armado com uma pistola em seu tempo se pudesse. Ou ainda que gays devem morrer. Os mandamentos Amar ao próximo como a si mesmo e Não matarás se tornam então apenas letras mortas. Deus que é todo amor é visto por esses/essas cristãos/cristãs como Deus guerreiro, vingativo, com todas as imperfeições humanas. Um Deus que na realidade não é Deus. Dai não verem qualquer problema em usar o seu Santo Nome para enriquecer, barganhar cargos, obter concessões para rádios e TVs; exigir os votos dos seus rebanhos para si, parentes ou aliados. Os cultos parecem mais comícios eleitorais do que atos de fé. Também estimulam e celebram as perseguições a outras religiões, grupos sociais e pessoas. É o ódio que prevalece e Deus é utilizado para referendá-lo.

Em quarto lugar, para tais cristãos/cristãs Deus não é Onipresente, mas somente pode ser encontrado nos prédios das igrejas. A ideia de que Deus existe dentro de cada um(a) de nós é deixada de lado. O divino presente em cada pessoa é retirado, restando somente o corpo.


Por fim, esses/essas cristãos/cristãs clamam em som alto que Jesus está retornando. A verdade é que Jesus vem todos os dias na forma de pessoas necessitadas, que passam fome, que têm sede de justiça, que são marginalizadas, que sofrem preconceito, que fazem caridade, que lutam por um mundo justo e solidário, que defendem a natureza, que não aceitam as desigualdades sociais, que andam no meio das que são levadas à condição de párias da sociedade, mas que são perseguidas e assassinadas cotidianamente por ações e omissões. Todavia, os/as cristãos/cristãs que não acreditam em Deus acham tudo isso apenas mi-mi-mi.

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Sobre o nosso olhar

Certo vez li um comentário que dizia mais ou menos o seguinte: É duro acordar todo dia e ter que escolher uma entre as muitas notícias ruins de toda manhã. De fato, a situação é difícil. A capacidade dos poderes hegemônicos é espantosa. Vivemos atualmente sob o "império da cultura da morte". A morte e o sofrimento como política de Estado e das forças destruidoras do capital. Nela os indesejáveis precisam desaparecer. No Brasil, materializada pelo bloco de poder capitaneado por Bolsonaro.
Cultura da morte
O filósofo italiano Giorgio Agamben escreveu um livro que eu gosto bastante intitulado O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Um dos artigos reproduz parte do título do livro: O que é contemporâneo? Um texto maravilhoso. As questões nele abordadas ofereceram a mim algum alento nesses tempos sombrios. Todavia, um alento compromissado, se podemos dizer desta forma, pois, ao contrário do que possa parecer num primeiro momento, não há passividade na medida em que nos conclama a entender o mundo. Uma atitude pró-ativa, engajada. E isto nunca foi tarefa das mais fáceis. Agamben apresenta chaves de leitura importantíssimas para a compreensão do que está ocorrendo à nossa volta.

A primeira questão é que não nos fixemos somente na luz. Olhar fixamente pra luz cega ou turva a visão de quem o faz. Olhe para o interior de uma fogueira de São João que você vai perceber isso facilmente. Ou seja, você terá grande dificuldade de entender o que se passa no mundo hoje se se dedicar somente ao que é facilmente visto, o que está à luz, na superfície ou na moda. Daí a importância de termos uma visão crítica sobre a mídia corporativa - desde as emissoras tradicionais de rádio, TV e jornais impressos até o Google, Facebook e outras gigantes do mundo virtual -, pois ela orienta o nosso olhar, incutindo em nós definições sobre o que é ou não importante, o que é ou não falso e verdadeiro. Precisamos educar nosso olhar para tentar enxergar aquilo que não é facilmente visto, ou que não está completamente exposto. Mirar o subterrâneo para tentar identificar as mudanças tectônicas, lentas, que não são lidas pelo olhar de quem só se fixa nas manchetes ou na "orelha" dos livros. Afirmar que Bolsonaro é autoritário ou fascista não é tão difícil. Gritar que a Lava-Jato foi uma das bases para a sustentação de um golpe de Estado que se efetivou também não é tão complicado. Difícil é explicar as entranhas da nossa sociedade que oportunizaram a Bolsonaro e seus acólitos chegarem ao comando do Estado brasileiro. Essa busca, porém, de romper com um tipo de conhecimento fundado no que reluz comporta uma armadilha que é o de cairmos no subjetivismo reacionário, que leva algumas pessoas a defenderem que a terra é plana, negar a ciência e a verdade científica, fazer campanha contra a vacinação em massa, afirmar que cada um tem a sua própria verdade ou ainda que Bolsonaro é um enviado de Deus. Vade retro!
Luz que cega


A segunda questão é que às vezes o distanciamento é a melhor maneira para enxergarmos adequadamente o que está acontecendo, compreendermos de forma aprofundada um processo ou um fato. Nem sempre quem está no centro da briga tem a melhor visão sobre o que realmente está ocorrendo. Manter um certo distanciamento ao mesmo tempo em que se é ator social não é tão simples. Uma questão que pesquisadores e pesquisadoras se colocam a todo momento. Não obstante, olhar com uma certa distância a fim de observar de maneira mais ampla possível exige também que tenhamos a capacidade de parar e observar. E no chamado mundo moderno ou pós-moderno, como afirmam alguns(mas), isto é cada vez mais difícil. Lembro quando usava a internet discada e esperava minutos e mais minutos para baixar um arquivo. E tudo bem. Hoje, se uma propaganda de dez segundos interfere eu fico estressado, acho uma eternidade. Por outro lado, quando sou o passageiro de um taxi e ando pelas mesmas ruas que trafego cotidianamente no banco do motorista me surpreendo com coisas e cenários que jamais tinha notado. Da mesma forma, quando tenho a oportunidade de caminhar pelo centro histórico de Belém num final de semana ou feriado percebo os desenhos dos ladrilhos das antigas construções, lembro das batalhas que ocorreram naquelas travessas do centro da cidade durante a Revolução Cabana - década de 1830 -, bem como recordo meu tempo de criança quando ia com a minha mãe fazer compras no Ver-o-Peso ou no centro comercial. Nada disso me vem à cabeça quando estou embebido da velocidade cotidiana. Parar, contemplar, pensar, formular e tirar conclusões na maioria das vezes são incompatíveis com a pressa. O distanciamento ajuda.
A luz mesmo quando não vista

A terceira questão é mesmo que não seja possível enxergar a luz, você sabe que ela está lá
. O universo - ou os multiversos - está se expandindo de tal forma que as distâncias entre as "bordas" e o interior serão tão grandes que chegará um momento que nem a luz emitida por uma grande estrela será percebida. Apesar disso, ela existirá. mesmo que você não enxergue. Talvez isso seja a própria Utopia. Hoje, com Trumps, Bolsonaros, guerras híbridas, golpes e violências institucionalizadas, às vezes fica difícil imaginar que é possível algo diferente. Que haja luz em vez desse mundo cada vez mais cinzento. Mas a Utopia é esse rasgo de luz atravessando o universo. A sociedade é capitalista. Com todas as suas mazelas, destruição, mortes e desigualdades. Contudo, é também esperança, resistências cotidianas, conquistas - às vezes microscópicas -, afetos e compromissos. Não vivemos numa sociedade igualitária e estamos muito longe dela, tal qual a luz emanada das partes mais longínquas do universo. Mas sabemos que ela está lá. Na luta política são nossas vontades, compromissos e projetos políticos os únicos caminhos para enxergá-la.

terça-feira, 13 de outubro de 2020

Bonner, viva até os 100 anos. Ou mais...

Circula pelas redes sociais a informação de que William Bonner, o editor-chefe e apresentador do Jornal Nacional, o principal noticiário televisivo da Rede Globo, quer abandonar as funções porque não aguenta mais tanta pressão. Sente-se cansado depois de tantos anos à frente do telejornal.

Com a crise provocada pela expansão do COVID-19 no nosso país o Jornal Nacional recuperou boa parte da audiência perdida nos últimos anos. Não há como negar a importância do telejornal na produção de matérias de qualidade sobre os riscos da pandemia. Ainda mais num contexto em que negacionistas, terraplanistas, religiosos ultraconsercadores, oportunistas e outros desqualificados estarem à frente da coalizão que momentaneamente conduz o Estado brasileiro. Isto sem falar na desconfiança de que haja até mesmo pessoas vinculadas ao crime organizado, como retratam diversas reportagens no Brasil e no exterior.

Entretanto, não podemos esquecer jamais o papel crucial desempenhado pela Globo no golpe de Estado que destituiu a presidenta Dilma Roussef. As tantas horas dedicadas exaustivamente a criminalizar o PT e a política em geral, o seu apoio estratégico aos grupos de direita e extrema-direita que estiveram à frente das mobilizações pelo impeachment da presidenta, o papel jogado pela empresa para mobilizar diariamente a população contra o governo e os movimentos sociais do campo democrático e popular, seu apoio incondicional às ilegalidades e atrocidades jurídicas cometidas por Sérgio Moro e os golden boys da Lava-Jato, devidamente demonstrado pelo Intercept através da Vaza-Jato. Enfim, a Globo, como naquela história em que o escorpião atravessa o rio no casco de uma tartaruga, mas que no meio da viagem pica esta última por ser "de sua natureza", nunca perdeu sua natureza autoritária e golpista. Contudo, não há como esperarmos por mais 50 anos para ouvirmos seus pedidos de desculpas.

Em toda essa trajetória o papel desempenhado por William Bonner no comando do Jornal Nacional não foi pequeno ou inexpressivo. Ele foi uma peça importantíssima nesse processo de completo desmantelamento da democracia e dos direitos sociais no Brasil. E a história lhe cobrará muito caro por isso.

Não há segredos que durem pra sempre. E a cada dia somos brindados com mais revelações sobre os bastidores do golpe. As máscaras caem uma a uma. E em pouco tempo não restará um lugar sequer para os falsos profetas, bandidos, os "senhores da justiça" ou oportunistas se esconderem. Vide Joaquim Barbosa, completamente relegado ao limbo. Sergio Moro é outro cuja imagem se esfarela rapidamente. Um castelo de areia sob o rigor dos ventos da história e dos fatos.

Bocas se abrirão. Memórias serão escritas. Documentários serão produzidos. Segredos sucumbirão. No Brasil isto tem acontecido frequentemente nos últimos anos. Desde Collor de Mello pra cá os exemplos são muitos. Menos por espírito público e mais por vingança e o desejo de acertar contas. Como na máfia ou em qualquer grupo criminoso.

William Bonner não estará impune a isto. As entranhas da Globo e do golpe serão revolvidas. O odor fétido dos cadáveres insepultos contaminarão os ambientes. Daí o motivo da torcida para que William Bonner viva 100 anos ou mais. Eu nem preciso estar aqui para ver com os meus próprios olhos, mas imagino o quanto será prazeroso vê-lo confrontado aos fatos que levaram ao definhamento da nossa fragil democracia e o papel desempenhado por ele na bancada do Jornal Nacional. Boa noite, Bonner.

segunda-feira, 8 de julho de 2019

A doença nossa de cada dia.

O desmonte do indivíduo.
Durante a semana que passou recebi por whatsapp uma charge em que o médico perguntava ao paciente onde doía. Este, por sua vez, respondia: "a realidade". De fato, a realidade tem se mostrado muito dura, particularmente às pessoas que definem o capitalismo como um sistema incapaz de resolver os principais males que afligem a humanidade. Para estas a destruição das políticas sociais inclusivas, o desmantelamento do Estado nacional, o recrudescimento das desigualdades, os ataques aos direitos humanos, a desconstrução da democracia e o avanço destruidor sobre o meio ambiente doem de maneira profunda.
Vivemos numa sociedade doente que custa a reconhecer-se dessa maneira. A algum tempo atrás li sobre uma pesquisa realizada em Paris na qual os/as cientistas recolheram amostras das águas dos esgotos da capital francesa para analisá-las. Os resultados divulgados evidenciaram que os parisienses estavam consumindo quantidade expressiva de medicamentos antidepressivos, antibióticos e outros cuja venda é controlada. Certamente um  sinal de alerta importante não somente para quem vive naquela cidade. Todavia, numa sociedade capitalista (re)alimentada pela busca incessante do lucro, as doenças não se configuram num problema ou risco ao sistema posto que lhes são funcionais:
A sociedade disciplinar é uma sociedade da negatividade. É determinada pela negatividade da proibição. O verbo modal negativo que a domina é o não-ter-o-direito. Também ao dever inere uma negatividade, a negatividade da coerção. A sociedade de desempenho vai se desvinculando cada vez mais da negatividade. Justamente a desregulamentação crescente vai abolindo-a. O poder ilimitado é o verbo modal positivo da sociedade de desempenho. O plural coletivo da afirmação Yes, we can expressa precisamente o caráter da positividade da sociedade de desempenho. No lugar de proibição, iniciativa e motivação. A sociedade disciplinar ainda está dominada pelo não. Sua negatividade gera loucos e delinquentes. A sociedade do desempenho, ao contrário, produz depressivos e fracassados.¹
Na sociedade do desempenho você "tem que matar um leão a cada dia". Lutar incansavelmente para ser o/a melhor em qualquer circunstância. Não ser passado para trás. Enfim, ser competitivo. Vencer! A propaganda é uma arma poderosa dessa "motivação" mercadológica. Estude. Trabalhe. Se empenhe. Aí vem o discurso da meritocracia para dar o verniz, dourar a pílula, numa situação que é em si mesma insustentável posto que fundada em relações completamente desiguais. Mas aí os cérebros em massa "reeducados" para a competição têm dificuldades para romper com os grilhões das "motivações" da sociedade do desempenho.
O neoliberalismo é um fracasso econômico, mas poderoso dos pontos de vista político e ideológico. A sociedade como empresa moldada pela perspectiva neoliberal é o "corpo", cujo "espírito" é constituído pelos pressupostos da sociedade do desempenho. Nesta, a solidariedade foi expurgada. Em seu lugar tão somente a redenção pela esmola, pelo paternalismo e pela demagogia. Eis algumas das raízes do bolsonarismo.

_____________________
1. HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini. 2a edição ampliada - Petrópolis, RJ : Vozes, 2017, p. 24-25.

quarta-feira, 3 de julho de 2019

Sob o olhar da tristeza.

Ando pelas ruas de Belém e é visível o clima de tristeza, sofrimento. É enorme a quantidade de pessoas nos faróis pedindo esmolas: velhos, crianças, indígenas venezuelanos.... A cidade está suja, esburacada, mal sinalizada, violenta. O lixo toma conta das ruas. À prefeitura inoperante se soma parte expressiva da população que se descompromissou com a cidade. O trânsito caótico é também lugar das arbitrariedades seja do Estado, seja dos próprios condutores. O desrespeito às regras ganha força. O "clima" da cidade reúne sentimentos diversos e, algumas vezes, conflitantes. Insatisfação, medo, revolta, desesperança. A baixa estima parece ter tomado conta de mentes e corações.
"Ratos e urubus, larguem a minha fantasia"

Aliado a isso há toda a situação do país. As instituições do Estado estão em frangalhos, resultado do golpe midiático-empresarial-partidário-jurídico-civil-militar que não somente contribuiu para a descrença generalizada, ao ódio à política e aos que pensam diferente, como levou ao chão a economia e à destruição de políticas públicas inclusivas e de instâncias de participação da sociedade civil. Por outro lado, nossa capacidade de reação enfrenta muitos obstáculos. Tudo está conectado.

A democracia representativa foi capturada pelas grandes corporações. Se tornou uma mera formalidade. Na verdade, com todos os seus limites, ela própria se constituiu num estorvo ao grande capital. Bolsonaro, Trump, o governo italiano, Macri e outros são expressões dessa decadência. Não há qualquer virtude neles e nos seus blocos de poder. Quer dizer sua única virtude é mostrar sem qualquer máscara, sem tergiversar, a sua sanha em destruir os pactos construídos ao longo de quatro séculos que resultaram no princípio de que todas as pessoas têm direito a ter direitos. Mesmo com todas as contradições existentes, tal ideia orientou ações governamentais e aprovação de tratados internacionais, entre outras iniciativas. Contudo, é justamente a noção de solidariedade que vem sendo atacada, desmontada, destruída. As pessoas sentem isso na pele, nas ruas, nas periferias, nos bancos dos hospitais, no aperto dos ônibus e trens, no abandono dos asilos e dos postos de saúde.
"No frio da noite aquece o pensamento"

O professor Marildo Menegat em seu livro A crítica do capitalismo em tempos de catástrofe nos mostra de maneira objetiva que para o sistema capitalista uma parte considerável da humanidade já não tem serventia alguma. São pessoas cuja existência se tornou um estorvo ao sistema. Uma conclusão crua, dura, mas verdadeira. O desmonte da previdência, a extinção de direitos adquiridos, o aval para que os instrumentos de coerção do Estado sejam empregados até à despeito da lei, entre tantas outras situações, são provas cabais de que a barbárie está sendo naturalizada, sob aplausos de uma gama considerável da população. Os "bolsominions" não me deixam mentir.

Vejo crianças abandonadas pelas ruas e cá com os meus botões fico me perguntando: Quantos cérebros estamos desperdiçando? Quantos músicos? Quantos(as) cientistas? Quantos(as) professores(as)? E aí me dou conta de quanta alegria jogada fora. Quanto orgulho subtraído de um país. Quanta paz lançada ao limbo. Quanto afeto não vivido. Mas as ruas continuam sujas e esburacadas, as pessoas estressadas no trânsito, os postos de saúde cheios e sem estrutura. Precisamos reconstruir nossas formas de socialização. Isto é um ato revolucionário.

terça-feira, 18 de junho de 2019

Comprometido com a morte.

Quando nos dispomos a analisar determinada conjuntura nossas preocupações giram em torno de estabelecermos as conexões entre os fatos (cotidianos e históricos) e as escalas (local, regional, nacional e internacional), identificarmos os interesses em jogo, compreendermos as correlações de forças. Tudo isso para chegarmos a determinadas conclusões que ajudem a nos posicionar no mundo. Logicamente o conflito entre as classes ganham realce nesse tipo de análise. Isto se você não for um positivista ou adepto de outra teoria próxima a ela.
Contudo, ao refletir sobre o governo Bolsonaro me vejo diante de questões que sinto irem além da estrutura de análise acima exposta. As medidas tomadas pelo executivo giram em torno da morte. É a dispensa do uso de cadeirinhas com cinto de segurança para crianças, a liberação da posse e do porte de armas, a destruição do sistema previdenciário, o corte de verbas para atender pessoas com necessidades especiais; o incentivo ao ódio contra LGBTs e moradores(as) das periferias, à invasão de terras indígenas e quilombolas, à depredação de áreas preservadas; a permissão para que policiais matem sem qualquer receio de serem julgados e condenados e a defesa de milícias, entre outras iniciativas.
Tenho lido muitas considerações nas redes sociais que identificam Jair Bolsonaro como um pessoa ignorante, burra, "sem noção" e outras menções pouco honrosas. Tais posicionamentos são compreensíveis diante de tantos absurdos cometidos em tão pouco tempo de governo, mas tenho dificuldade de concordar plenamente com as mesmos, acho-os limitados por desprezarem um aspecto que considero relevante.
Para mim Bolsonaro é um sujeito essencialmente mal, cujo objetivo fundamental é promover as mortes física e simbólica de expressivos contingentes da população não somente do nosso país. É um sujeito comprometido com a morte. O ódio que ele nutre por gays, lésbicas, indígenas, pobres, pretos(as), indígenas, favelados(as) e outros grupos sociais mescla as questões de classe, desequilíbrios emocionais, tendência homicida, mal caratismo, misoginia e racismo.
Jair Bolsonaro me faz lembrar a tese da banalidade do mal tão maravilhosamente explicitada por Hanna Arendt quando escreveu sobre o julgamento do militar nazista Adolf Eichmann, ocorrido em 1961. É o mal cruelmente naturalizado. Um homem que era capaz de ao longo do dia enviar milhares de pessoas para serem assassinadas nos campos de concentração e à noite sentar-se à mesa para jantar com a família depois de orar a Deus.
Bolsonaro também me faz lembrar de Achile Mbembe e o debate que ele realiza sobre a necropolítica. Nesta, um contingente enorme da população mundial não tem mais serventia alguma. O horror disso é que as próprias políticas governamentais são orientadas para dar cabo desse objetivo. Ou seja, de promover a morte em massa. Não é justamente isso o que faz o atual mandatário? Não é isso que vai acontecer com os velhos que dependem dos minguados recursos das aposentadorias? Não é a isso que vai levar a destruição do Sistema Único de Saúde (SUS)? Não é isso que irá se afirmar na sociedade com exclusão do acesso à educação como um direito de jovens pobres, indígenas, negros(as)? Não é isso o que nos espera quando a esperança for definitivamente capturada pelo medo?
A estrutura de análise da qual falei no início deste texto continua válida. Porém, estamos diante de um sujeito e um bloco de forças que é profundamente comprometida com a morte física, simbólica e institucional (não é isso o que está ocorrendo com a nossa frágil democracia?). Jair Bolsonaro é um mensageiro da morte. Um homem a serviço dela. Esta é a espinha dorsal da sua estratégia política e da sua perspectiva de mundo. Nunca esqueçamos disto.