quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

O olhar excludente sobre a resistência social no Brasil.

Acompanho pelas redes sociais e ouço nos debates dos quais participo muitas lamentações acerca da resistência social no Brasil. Há até quem em tom de ironia defenda a importação de argentinos a fim de que estes desencadeiem um amplo processo de mobilização social no nosso país. Como diversão a ironia é bem-vinda, somente isso. É verdade que os movimentos sociais encontram grandes dificuldades para repetir em nosso país o que está ocorrendo não somente na Argentina. Os motivos são vários. Contudo, o que quero destacar aqui é a perspectiva excludente de algumas dessas análises, que simplesmente descartam do jogo político diferentes atores sociais que obstinadamente lutam contra a ditadura do capital no chão dos territórios. Além da seletividade, atrevo-me a dizer que há ainda a mescla de desconhecimento do que ocorre fora do eixo Sul-Sudeste do Brasil, resquícios de certa ortodoxia que não vê nada que não seja "capitaneado pela classe operária" e mesmo uma perspectiva colonialista, histórica, diga-se de passagem, sobre a Amazônia - podemos incluir aqui o Nordeste.

Antes das famosas e tão faladas jornadas de junho de 2013 indígenas de diversas partes do Brasil enfrentaram o governo central e o Congresso Nacional, ocupando este último a ponto de impedir a continuidade dos trabalhos dos parlamentares, quando Eduardo Cunha e sua corja encontravam-se no comando do legislativo. Isto ocorreu em abril. Como sempre, foram vítimas de violenta repressão policial. Ao final, porém, conseguiram impor parte da sua agenda ao debate no parlamento. Foram manifestações massivas, articulando variadas formas de luta e contando com o apoio de diferentes atores sociais do Brasil e do exterior. Mas dificilmente você ouvirá alguém incluir nas suas análises a contribuição dessas mobilizações para o combate a agenda neoliberal que toma conta do nosso país. O foco geralmente são as "jornadas de junho".

Dias atrás os munduruku impediram a realização de uma audiência pública em Itaituba (PA) para tratar da Ferrogrão, uma ferrovia fundamental ao agronegócio na sua sanha de controlar mais e mais territórios no país. No Pará, agricultores(as), indígenas, quilombolas, extrativistas, movimentos de mulheres e de jovens, pastorais sociais e ribeirinhos, com o apoio de pesquisadores e outros setores, têm realizado renhida oposição às tentativas do governo estadual de implantar uma ferrovia do Sul do Pará até o município de Barcarena, também para favorecer o agronegócio e as mineradoras.

Em toda a Amazônia se espalha a mobilização de povos indígenas e comunidades tradicionais para defenderem seus direitos à consulta com base nos termos da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Os povos Munduruku e Waiãpi, pescadores(as) comunidades quilombolas, ribeirinhos e outros lançaram-se com determinação para aprovarem seus protocolos como mais uma estratégia de resistência, de combate ao poder destruidor do grande capital e de construção e/ou afirmação de alternativas. Em Barcarena (PA), ribeirinhos e comunidades quilombolas bloquearam por terra e rio as entradas da Hydro, empresa norueguesa que tem provocado a morte de rios e igarapés, destruído os modos de vida de comunidades tradicionais e toda poderosa na área de mineração, além de se contraporem aos interesses de outros conglomerados econômicos argelinos, europeus e estadunidenses que tentam expandir suas ações predatórias na região.

Em abril deste ano se realizou na cidade de Tarapoto, no Peru, o VIII Fórum Social PanAmazônico, um dos melhores fóruns que aconteceram desde a sua primeira edição em 2002, em Belém do Pará. Mesmo sem contar com o efetivo engajamento de centrais sindicais, por exemplo, o Fórum de Tarapoto conseguiu reunir milhares de pessoas que realizaram debates sumamente importantes não somente para a região, mas para os povos de todo planeta: financeirização da natureza, mudanças climáticas, combate ao neoliberalismo, Bem Viver, luta contra o patriarcado, os direitos da Mãe Terra, a militarização da região (geopolítica), entre outros, foram alvo das reflexões de ativistas.. Além disso, se realizou o II Encontro de Investigadores(as) cujas reflexões sobre a produção do conhecimento e o necessário diálogo entre os saberes científico e ancestrais/tradicionais, bem como sobre as relações entre a academia e os movimentos sociais trouxeram enormes contribuições ao debate sobre as tentativas do grande capital de controlar a produção do conhecimento em escala global, da expropriação do conhecimento gerado por povos indígenas e comunidades tradicionais.  Aqui estamos debatendo questões de ponta da pauta dos movimentos mundialistas e integramos processos de luta em escala global.

Por outro lado, o movimento camponês tem se deparado com ações regressivas do Estado brasileiro muitas vezes piores do que as implementadas durante a ditadura militar. É terrível chegar a essa constatação, mas é fato. A pena de morte para lideranças campesinas e seus apoiadores é regra geral na Amazônia. A "justiça" acabou de soltar os PMs responsáveis pela chacina de Pau D'Arco. A situação em Rondônia é angustiante. A perseguição no Acre contra o CIMI e as lideranças indígenas que se opõem às "alternativas de mercado" para manter a floresta em pé é uma triste realidade. Mesmo assim mobilizações e ações de resistência pululam na Amazônia brasileira. Isto sem falar nas ações desencadeadas por movimentos sociais em todos os demais países pan-amazônicos e na Guiana Francesa. Nesta, uma greve geral questionou seriamente o poder da metrópole.

Estamos antenados com a conjuntura nacional. Aqui o escracho contra parlamentares e governantes golpistas são frequentes. Em Santarém, indígenas ocuparam a prefeitura e a Câmara de Vereadores para dizerem em alto e bom som: Não ao agronegócio! Não às mineradoras! Não aos portos, hidrelétricas e outros empreendimentos de infraestrutura que destroem os territórios. As mulheres têm sido um dos principais esteios de todas essas lutas que se travam nesta região, demonstrando sua força e contribuindo decisivamente à revitalização dos movimentos sociais.

É verdade que a multidão não tem tomado conta da avenida Paulista ou da Cinelândia? É verdade que as massas neste momento não têm se apossado dos gramados de Brasília para se contraporem às reformas destruidoras de direitos? Sim, é verdade. Isto significa que precisamos importar nuestros hermanos para realizarem a luta social por nós, ou que a sociedade civil está desmobilizada? Não é necessário.

Um fato não tão difícil de se constatar é que os partidos políticos de esquerda perderam muito da sua capacidade de mobilização social. Por sua vez, organizações como as centrais sindicais também enfrentam problemas semelhantes. Enquanto isso há uma profusão de lutas a partir do chão dos territórios. Na Amazônia, alianças estratégicas entre diferentes atores sociais se realizam. Uma nova forma de ação política em rede vai sendo construída. Todos nós amazônidas temos sido conclamados a repensar os nossos pensamentos e nossas ações. O debate sobre o Bem Viver e os Bens Comuns ganham espaço, sem que tenhamos qualquer pretensão de usá-los para substituir o marxismo ou outros paradigmas tão caros a nós da esquerda. Pelo contrário, é um movimento real de rejuvenescimento do fazer e do pensar sob as condições históricas de uma sociedade globalizada hegemonizada pelo neoliberalismo.

A luta social é bem maior do que ocorre no RJ ou em SP. E bem mais rica e complexa do que a vã filosofia de muitos analistas, mesmo do nosso campo político.

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

A direita constrói a convulsão social no Brasil e se prepara para ela.

As direitas brasileiras assumiram o protagonismo da luta político-ideológica no nosso país. A bem da verdade esse protagonismo das direitas se dá atualmente em escala global, tendo as esquerdas enormes dificuldades para se contrapor a tal ofensiva de modo também global. É muito importante ressaltarmos esse caráter plural tanto da direita quanto da esquerda. Caso contrário, deixaremos de lado características relevantes de uma e de outra. No Brasil, as direitas se unificaram em torno da derrubada do governo capitaneado pelo PT e contra as políticas que bem ou mal minoraram o terrível quadro de desigualdades sociais que atravessam nosso país, como as cotas raciais e mesmo o Bolsa Família, entre outras, pois o PT não efetivou realmente qualquer mudança estrutural que colocasse em xeque o poder das elites.
Tudo parece indicar que há segmentos ultraconservadores, cujas bases ideológicas são pré-Iluministas, a capitanear a disputa política global e que são profundamente comprometidos com a globalização hegemonizada pelo capital financeiro ao mesmo tempo em que, do ponto de vista social, buscam nos remeter ao século XVIII. Uma tentativa de cruzar elementos dos séculos XXI e XVIII na construção de uma nova (des)ordem social. Os pactos que foram construídos historicamente a partir do Iluminismo e que resultaram na Declaração Universal dos Direitos Humanos, na ideia de universalização de direitos, entre outras conquistas, vêm sendo sistematicamente desconstruídos por essa direita. Sua mensagem é clara: Cada um por si, nada de Estado de bem estar social ou algo do tipo, quem quiser algum benefício que busque no mercado. Daí a violência dos ataques a qualquer forma de solidariedade ou de políticas públicas includentes. No lugar da solidariedade a adoção de práticas assistencialistas, de preferência de caráter individual e compensatórias. No campo ambiental, nada de amarras legais à livre expropriação de territórios e de seus povos pelos grandes conglomerados econômicos transnacionais; no máximo, medida mitigatórias que em nada diminuem os sofrimentos das pessoas atingidas. No campo político, a "construção de heróis" supostamente capazes de salvar a nós todos de nós mesmos (Sergio Moro, Bolsonaro, Luciano Huck e outros), a partir de pautas calcadas num falso moralismo, sexista, homofóbica, racista, com uso inteligente do medo para angariar simpatia de amplas camadas da população, da promoção de medidas criminosas para a resolução de conflitos (assassinatos, uso da "justiça" para combater adversários (lawfare), perseguição, campanhas de calúnia e destruição de biografias através das redes sociais e mídia corporativa etc.) e de suposta defesa da família para galgar postos de comando no aparelho dos Estados. Tudo para garantir a captura da democracia pelo neoliberalismo e suas corporações. É isto o que representa o governo golpista de Michel Temer e seus asseclas. É o governo da cleptocracia[1] a serviço do capital financeiro internacionalSome-se a isto tudo a implementação de uma consistente estratégia voltada à criminalização da política, a sua despolitização, diuturnamente martelada por veículos de comunicação como a Globo e seus pares; a adoção de políticas regressivas capazes de reconduzir milhões de pessoas ao mapa da fome, a pactuação com o crime organizado (em especial o tráfico de drogas) e o desmantelamento do aparelho do Estado.
O conservadorismo aprofunda suas raízes. Evidentemente, tudo isto tende a resultar no recrudescimento dos conflitos em larga escala. As elites não deixarão de ser cobradas. A que ponto e a escala de tais cobranças dependem de muitas condicionantes. Tal como afirmam diversas análises o Brasil parece ter se convertido num laboratório global de uma nova fase neoliberal, assim como o Chile o foi na década de 1970 antes de Reagan e Thatcher assumirem o comando desse processo. Nossa capacidade resistir e de impor derrotas a este projeto está sendo testada e isto servirá de lição para novos experimentos em outros países. As direitas já deram mostras de que se preparam para a convulsão social. A ditadura é uma escolha plausível para elas, pois não possuem qualquer compromisso com a democracia.



[1] A palavra “cleptocracia” significa “Estado governado por ladrões”, literalmente. O termo se refere a um tipo de governo no qual as decisões são tomadas com extrema parcialidade, indo totalmente ao encontro de interesses pessoais dos detentores do poder político.

sexta-feira, 2 de junho de 2017

Precisamos de desenvolvimento?

Na década de 1910 a economia da borracha na Amazônia vivenciou profunda crise por conta do plantio em larga escala promovido pelos ingleses na Ásia. O comércio e a incipiente indústria locais entraram em colapso. A borracha amazônica se tornou secundária e isto repercutiu pesadamente sobre as contas nacionais. Ao longo daquela década se instaurou um interessante debate sobre o futuro da economia e as alternativas para o desenvolvimento econômico da região. As elites se dividiam quanto ao que se deveria promover. Alguns defendiam que a crise era temporária e que o preço do produto voltaria a subir. Outros apostavam na pecuária, no café, na agricultura familiar, na mineração e por aí vai. Todavia, o governo paraense pouco podia fazer para reverter tal situação, sequer conseguia mobilizar forças policiais para combater os índios Urubu que a partir do Maranhão avançavam sobre o território paraense, esta uma grande reivindicação das elites políticas àquela época. O desenvolvimento parecia ameaçado.

Passaram-se os anos e apesar de seu pouco peso político nas estruturas de poder que realmente decidem o presente e o futuro desta região, a Amazônia continua a ser relevante para a balança comercial e a entrada de dólares, bem como para efetivar a tão sonhada integração econômica da América do Sul; em que pese manter-se entre os piores Indicadores de Desenvolvimento Humano do país, ser palco de conflitos territoriais que levam anualmente ao assassinato de indígenas, camponeses, agentes pastorais e outros ativistas sociais, ser palco da expropriação em larga escala estimulada pelo Estado brasileiro em favor de transnacionais - aí incluídos bancos, empreiteiras, agronegócio etc. - e de segmentos empresariais brasileiros associados a elas.

A história não se repete, nem como farsa. Contudo, alguns dilemas parecem permanentes. A questão de como garantir o desenvolvimento econômico constante e ascendente é um deles, especialmente para os blocos de poder que se sucedem à frente do Estado brasileiro. Todavia, parcela expressiva da esquerda e dos governos considerados progressistas também comunga de uma visão crescimentista da economia, fundada na exploração intensiva da natureza, tal como no Brasil de Lula e Dilma, na Venezuela de Chavez e Maduro, na Bolívia de Evo Morales ou no Equador de Correa.

Segundo o nosso grande mestre Celso Furtado, "progresso" e "desenvolvimento" se constituíram em poderosos instrumentos de justificação política e ideológica de todas as atrocidades cometidas pelos europeus quando da sua chegada na América[i]. Ainda hoje ambos os termos são fartamente empregados pelas forças conservadoras para combater qualquer iniciativa que se oponha ao modelo hegemônico, assim como é parte constitutiva do discurso dominante em defesa do desmonte da legislação ambiental, da instalação de complexos logísticos de infraestrutura para incrementar a exportação de commodities, da redução do tamanho de áreas de preservação e do erguimento de obstáculos para a demarcação de novas áreas indígenas ou quilombolas (Brasil); da extração do petróleo existente em terras indígenas (Equador); da expansão do monocultivo de soja (Bolívia), da cessão de vastos territórios para as indústrias petroleira e madeireira (Peru), da construção de hidrelétricas e a expansão de redes de distribuição de energia (Venezuela) etc. Nesse contexto ser tachado de opor-se ao "progresso" e ao "desenvolvimento" é carregar uma pecha difícil de ser arrancada, é sofrer tentativas de desmoralização pública, é ser compulsoriamente colocado em confronto com desejos cotidianamente estimulados na sociedade: consumo, crescimento econômico, riqueza, controle sobre a natureza etc.

O fato é que "desenvolvimento" se tornou, particularmente após a II Guerra Mundial, uma poderosa ferramenta político-ideológica habilmente utilizada pelo imperialismo estadunidense para fazer valer seus interesses ao redor do mundo. Desde então o discurso do desenvolvimento vem sendo empregado de forma a evidenciar diferenças (reais e supostas) entre os países e no interior destes: avançados x atrasados, desenvolvidos x subdesenvolvidos, modernos x arcaicos ou tradicionais, entre outras. Contudo, a própria guerra mostrou que não caminhamos necessariamente a um futuro promissor já que adquirimos até mesmo a capacidade de nos exterminar enquanto espécie, agora aprofundada por conta dos desequilíbrios climáticos promovidos pela ação humana.

Diferentemente do que foi apregoado por W. W. Rostow[ii] não há etapas a serem cumpridas que levarão a todos rumo ao desenvolvimento e à felicidade, basicamente por dois motivos: a) o planeta não suportará os níveis exorbitantes de consumo, de produção de dejetos e de degradação ambiental; e; b) as condições históricas que permitiram Estados Unidos, França, Alemanha e as demais nações do G-7 chegarem onde chegaram não serão generalizadas aos demais, pois como bem disse Ha-Joon Chang a "escada foi chutada"[iii]. Um ou outro, como no caso da China, poderão aproximar-se, mas isto jamais abarcará o restante. Nestes a tendência é que apenas uma pequena fração de suas populações acumule riqueza suficiente para usufruir dos altos padrões europeu ou estadunidense, evidenciando as profundas desigualdades neles existentes.

E como pano de fundo disso tudo está o fato de nos encontrarmos em um momento denominado pelo historiador camaronês Achille Mbembe como sendo o "fim da era do humanismo"[iv]. Uma era em que, segundo podemos apreender de suas reflexões, a ameaça que se coloca para a humanidade é o confronto entre democracia e o capital cada vez mais financeirizado:
(...) Em qualquer caso, é um sintoma de mudanças estruturais, mudanças que se farão cada vez mais evidentes à medida que o novo século se desenrolar. O mundo como o conhecemos desde o final da Segunda Guerra Mundial, com os longos anos da descolonização, a Guerra Fria e a derrota do comunismo, esse mundo acabou.
Outro longo e mortal jogo começou. O principal choque da primeira metade do século XXI não será entre religiões ou civilizações. Será entre a democracia liberal e o capitalismo neoliberal, entre o governo das finanças e o governo do povo, entre o humanismo e o niilismo.
O capitalismo e a democracia liberal triunfaram sobre o fascismo em 1945 e sobre o comunismo no começo dos anos 1990 com a queda da União Soviética. Com a dissolução da União Soviética e o advento da globalização, seus destinos foram desenredados. A crescente bifurcação entre a democracia e o capital é a nova ameaça para a civilização.
Apoiado pelo poder tecnológico e militar, o capital financeiro conseguiu sua hegemonia sobre o mundo mediante a anexação do núcleo dos desejos humanos e, no processo, transformando-se ele mesmo na primeira teologia secular global. Combinando os atributos de uma tecnologia e uma religião, ela se baseava em dogmas inquestionáveis que as formas modernas de capitalismo compartilharam relutantemente com a democracia desde o período do pós-guerra – a liberdade individual, a competição no mercado e a regra da mercadoria e da propriedade, o culto à ciência, à tecnologia e à razão.
É possível identificar "pontos de contato" entre o pensamento de Mbembe com as formulações de Dardot e Laval. Para estes o "neoliberalismo não é apenas uma ideologia, um tipo de política econômica. É um sistema normativo que ampliou sua influência ao mundo inteiro, estendendo a lógica do capital a todas as relações sociais e a todas as esferas da vida"[v]. Ao falarmos de neoliberalismo normalmente ressaltamos as privatizações, as propostas de redução do tamanho do Estado ou a focalização das políticas governamentais. Contudo, talvez mais importante do que isso tudo é compreendermos que a característica fundamental do neoliberalismo é que ele se mostrou capaz de moldar nossas subjetividades - ou como afirma Mbembe, de anexar o núcleo dos nossos desejos, nos fazer parte do jogo a fim de garantir a reprodução do sistema, mesmo quando nos dispomos a destruí-lo[vi]. O que está em jogo com o neoliberalismo é "nada mais nada menos que a forma de nossa existência, isto é a forma como somos levados a nos comportar, a nos relacionar com os outros e com nós mesmos. O neoliberalismo define certa norma de vida nas sociedades ocidentais e, para além dela, em todas as sociedades que as seguem no caminho da 'modernidade'"[vii]. Por outro lado, o neoliberalismo busca livrar-se de todas as amarras, daí que a democracia e qualquer forma de controle social são encaradas como um estorvo, algo a ser superado. É o governo das corporações que se materializa de diferentes formas, seja como a troika na Europa ou através da completa rendição do Congresso Nacional brasileiro aos ditames dos grandes grupos privados - Globo, Odebrecht, JBS, Vale, agronegócio etc. -, aliançados ao Judiciário e a outros segmentos.
As reformas da previdência e trabalhista, a aprovação do Código Florestal, a revisão das áreas de preservação e a completa destruição dos direitos garantidos na Constituição de 1988, entre outros, evidenciam a crescente perda de qualquer noção de solidariedade e da conformação de um processo em larga escala de eliminação seletiva, e nos colocam diante da questão se de fato a era do humanismo terminou. E nesse contexto o Estado se constituiu num instrumento chave para a afirmação neoliberal. Portanto, acreditar que a eleição de Lula em 2018 ou diretamente ainda em 2017 será capaz de reverter esse quadro sem romper decididamente com esta estrutura estatal é bem mais do que simples ingenuidade. Todavia, é preciso buscar romper também com o sistema normativo que nos foi imposto, que nos relega aos estreitos limites do debate sobre desenvolvimento e crescimento econômico. Daí afirmarmos que estes não nos servem como parâmetros de análise das novas dinâmicas surgidas com a globalização e nem como estratégias políticas em vista da superação do capitalismo.
Uma questão chama atenção no Brasil quando observamos as diversas iniciativas de resistência ao avassalador processo de expropriação territorial em andamento: os povos originários, camponeses, quilombolas, ribeirinhos, as comunidades de fundo de pasto e pesqueiras e outros mais não restringem suas críticas ao modelo hegemônico de desenvolvimento. Suas lutas, suas pautas, suas formulações e seus próprios modos de vida expressam uma contundente crítica civilizatória. Esta é, a meu ver, uma das diferenças qualitativas em relação a boa parte do movimento sindical operário, por exemplo; este majoritariamente preso às armadilhas do debate sobre desenvolvimento e/ou crescimento econômico. É bem verdade que mesmo nos segmentos citados anteriormente há diferenças nada desprezíveis, como no caso das contendas sobre a Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação (REDD) ou o mercado de carbono, mas mesmo isto não desqualifica suas críticas ao sistema-mundo capitalista, moderno, colonial, antropocêntrico, machista e racista, na feliz expressão do professor Carlos Walter Porto-Gonçalves.
É preciso olhar detidamente para esses segmentos. Eles têm muito a nos dizer. As manifestações de junho de 2013 foram importantes? Claro que sim! Mas porque a maioria das análises sobre a retomada das mobilizações sociais no país negligencia o fato de que em abril daquele mesmo ano os povos indígenas se puseram em confronto decisivo pelos seus direitos com os poderes constituídos? Os confrontos abertos ocorridos naquele período foram tão incisivos quanto os de junho. Qual o motivo desse não reconhecimento? A renitente resistência dos munduruku da bacia do Tapajós forçou o governo federal e abandonar a ideia - ao menos até o presente momento - da construção de hidrelétricas em seus territórios. Eles conseguem aliar ação em rede - conformando uma rede de apoio e solidariedade desde o plano local até o internacional a partir da implementação de variadas estratégias de ação, lutando no marco da institucionalidade, como a exigência de que sejam consultados com base nos dispositivos da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), mas não se rendendo exclusivamente a ela. Exemplo disso foram as iniciativas de autodemarcação de suas terras ou quando da expulsão de seus territórios de pesquisadores envolvidos com o levantamento de informações para os Estudos de Impacto Ambiental (EIA).

Os modos de vida desses segmentos e o controle que exercem sobre muitos territórios os fizeram ser considerados inimigos a serem derrotados pelo bloco de poder a frente do aparelho do Estado brasileiro. A nova etapa de acumulação ampliada do capital baseada na financeirização e no controle sobre as próprias bases da reprodução da vida, seja através do patenteamento do conhecimento ou do mercado de carbono, os tornam atores sociais relevantes nas lutas por mudanças estruturais na sociedade. Dai que os debates sobre desindustrialização ou reprimarização da economia tendem a agregar muito pouco quando vinculadas à questão do desenvolvimento e do crescimento econômico. E, pior, quando desconsideram atores sociais que na atualidade executam a crítica mais contundente ao nosso modelo civilizatório.




[i] FURTADO, Celso. Introdução ao desenvolvimento: enfoque histórico-estrutural. 3.ed. São Paulo: Paz e Terra. 2000.
[ii] ROSTOW, W. W. As etapas do desenvolvimento econômico. Ed. Zahar, 1974.
[iii] CHANG, Ha-Joon. Chutando a escada: desenvolvimento em perspectiva histórica. Ed. UNESP, 2004.
[iv] MBEMBE, Achille. A era do humanismo está terminando. Ver: http://www.ihu.unisinos.br/564255-achille-mbembe-a-era-do-humanismo-esta-terminando
[v] DARDOT, Pierre, LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal ; tradução Mariana Echalar. - 1. ed. - São Paulo: Boitempo, 2016, p.7.
[vi] Dificilmente algum de nós coloca os filhos para estudar inglês pensando nas leituras de Shakespeare.
[vii] Idem. p. 16.