quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Sobre o nosso olhar

Certo vez li um comentário que dizia mais ou menos o seguinte: É duro acordar todo dia e ter que escolher uma entre as muitas notícias ruins de toda manhã. De fato, a situação é difícil. A capacidade dos poderes hegemônicos é espantosa. Vivemos atualmente sob o "império da cultura da morte". A morte e o sofrimento como política de Estado e das forças destruidoras do capital. Nela os indesejáveis precisam desaparecer. No Brasil, materializada pelo bloco de poder capitaneado por Bolsonaro.
Cultura da morte
O filósofo italiano Giorgio Agamben escreveu um livro que eu gosto bastante intitulado O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Um dos artigos reproduz parte do título do livro: O que é contemporâneo? Um texto maravilhoso. As questões nele abordadas ofereceram a mim algum alento nesses tempos sombrios. Todavia, um alento compromissado, se podemos dizer desta forma, pois, ao contrário do que possa parecer num primeiro momento, não há passividade na medida em que nos conclama a entender o mundo. Uma atitude pró-ativa, engajada. E isto nunca foi tarefa das mais fáceis. Agamben apresenta chaves de leitura importantíssimas para a compreensão do que está ocorrendo à nossa volta.

A primeira questão é que não nos fixemos somente na luz. Olhar fixamente pra luz cega ou turva a visão de quem o faz. Olhe para o interior de uma fogueira de São João que você vai perceber isso facilmente. Ou seja, você terá grande dificuldade de entender o que se passa no mundo hoje se se dedicar somente ao que é facilmente visto, o que está à luz, na superfície ou na moda. Daí a importância de termos uma visão crítica sobre a mídia corporativa - desde as emissoras tradicionais de rádio, TV e jornais impressos até o Google, Facebook e outras gigantes do mundo virtual -, pois ela orienta o nosso olhar, incutindo em nós definições sobre o que é ou não importante, o que é ou não falso e verdadeiro. Precisamos educar nosso olhar para tentar enxergar aquilo que não é facilmente visto, ou que não está completamente exposto. Mirar o subterrâneo para tentar identificar as mudanças tectônicas, lentas, que não são lidas pelo olhar de quem só se fixa nas manchetes ou na "orelha" dos livros. Afirmar que Bolsonaro é autoritário ou fascista não é tão difícil. Gritar que a Lava-Jato foi uma das bases para a sustentação de um golpe de Estado que se efetivou também não é tão complicado. Difícil é explicar as entranhas da nossa sociedade que oportunizaram a Bolsonaro e seus acólitos chegarem ao comando do Estado brasileiro. Essa busca, porém, de romper com um tipo de conhecimento fundado no que reluz comporta uma armadilha que é o de cairmos no subjetivismo reacionário, que leva algumas pessoas a defenderem que a terra é plana, negar a ciência e a verdade científica, fazer campanha contra a vacinação em massa, afirmar que cada um tem a sua própria verdade ou ainda que Bolsonaro é um enviado de Deus. Vade retro!
Luz que cega


A segunda questão é que às vezes o distanciamento é a melhor maneira para enxergarmos adequadamente o que está acontecendo, compreendermos de forma aprofundada um processo ou um fato. Nem sempre quem está no centro da briga tem a melhor visão sobre o que realmente está ocorrendo. Manter um certo distanciamento ao mesmo tempo em que se é ator social não é tão simples. Uma questão que pesquisadores e pesquisadoras se colocam a todo momento. Não obstante, olhar com uma certa distância a fim de observar de maneira mais ampla possível exige também que tenhamos a capacidade de parar e observar. E no chamado mundo moderno ou pós-moderno, como afirmam alguns(mas), isto é cada vez mais difícil. Lembro quando usava a internet discada e esperava minutos e mais minutos para baixar um arquivo. E tudo bem. Hoje, se uma propaganda de dez segundos interfere eu fico estressado, acho uma eternidade. Por outro lado, quando sou o passageiro de um taxi e ando pelas mesmas ruas que trafego cotidianamente no banco do motorista me surpreendo com coisas e cenários que jamais tinha notado. Da mesma forma, quando tenho a oportunidade de caminhar pelo centro histórico de Belém num final de semana ou feriado percebo os desenhos dos ladrilhos das antigas construções, lembro das batalhas que ocorreram naquelas travessas do centro da cidade durante a Revolução Cabana - década de 1830 -, bem como recordo meu tempo de criança quando ia com a minha mãe fazer compras no Ver-o-Peso ou no centro comercial. Nada disso me vem à cabeça quando estou embebido da velocidade cotidiana. Parar, contemplar, pensar, formular e tirar conclusões na maioria das vezes são incompatíveis com a pressa. O distanciamento ajuda.
A luz mesmo quando não vista

A terceira questão é mesmo que não seja possível enxergar a luz, você sabe que ela está lá
. O universo - ou os multiversos - está se expandindo de tal forma que as distâncias entre as "bordas" e o interior serão tão grandes que chegará um momento que nem a luz emitida por uma grande estrela será percebida. Apesar disso, ela existirá. mesmo que você não enxergue. Talvez isso seja a própria Utopia. Hoje, com Trumps, Bolsonaros, guerras híbridas, golpes e violências institucionalizadas, às vezes fica difícil imaginar que é possível algo diferente. Que haja luz em vez desse mundo cada vez mais cinzento. Mas a Utopia é esse rasgo de luz atravessando o universo. A sociedade é capitalista. Com todas as suas mazelas, destruição, mortes e desigualdades. Contudo, é também esperança, resistências cotidianas, conquistas - às vezes microscópicas -, afetos e compromissos. Não vivemos numa sociedade igualitária e estamos muito longe dela, tal qual a luz emanada das partes mais longínquas do universo. Mas sabemos que ela está lá. Na luta política são nossas vontades, compromissos e projetos políticos os únicos caminhos para enxergá-la.