terça-feira, 14 de outubro de 2014

UMA PEÇA DA ENGRENAGEM


Eu sou um amante da paz. Por mim jamais haveria guerras, assassinatos ou conflitos. Sou um homem religioso. Amo a Deus acima de tudo e tento amar o próximo como a mim mesmo.
Defendo que a liberdade é algo primordial a todos. Por isso não aceito preconceitos contra a minha religião, meu modo de vida ou pensamento.
Não sou de forma alguma homofóbico, racista ou machista. Agora, não suporto a tentativa de alguns de querer impor uma ditadura gay no nosso país. Isso é um escárnio. Uma blasfêmia contra Deus.
Eu sei que devo amar o próximo como a mim mesmo, mas eu não sou gay. Então, porque eu devo amar um homossexual? O próximo, pra mim, é heterossexual. Um macho no sentido pleno da palavra. Como dar liberdade para que esse tipo de gente atente contra os valores da fé?
Da mesma forma está em andamento uma campanha orquestrada para que as mulheres assumam os lugares que são dos homens de direito. A Bíblia diz com todas as letras: as mulheres devem ser submissas ao homem. Eu não sou machista. Até repudio esse negócio de bater em mulher, estupros e assassinatos. Mas, convenhamos, algumas mulheres pedem pra isso acontecer. Aquelas roupas curtinhas...
Outra campanha é a favor dos pretos. Agora é bolsa disso e daquilo, cotas etc. Estão impondo ao nosso país o conflito racial. Logo nós que sempre fomos a nação da democracia racial. É fato que a maioria dos pobres é preta, mas isso não tem relação com preconceito e sim com falta de oportunidade e de capacidade intelectual. Por isso os pretos são mal remunerados, ou realizam os piores trabalhos.
Pausa...
Após a II Guerra Mundial iniciou-se o julgamento de muitos nazistas por conta dos crimes de guerra cometidos por eles. Entre os nazistas julgados estava um cabo da SS chamado Adolf Eichmann. Em 1962 ele foi condenado à forca. Por que lembrei dele?
Hanna Arendt
Hanna Arendt, filósofa alemã, uma das mais brilhantes intelectuais do século XX, escreveu uma série de cinco artigos sobre esse julgamento intitulado Eichmann em Jerusalém - Um relato sobre a banalidade do mal. A análise de Arendt foi devastadora. Em vez do monstro sanguinário ressaltado pela imprensa e diversas pessoas e organizações ao redor do mundo, Eichmann era um homem simples, um funcionário público honesto, até mesmo exemplar. Sua função? Planejar e operacionalizar a “solução final”. Ou seja, ele era responsável por coordenar toda a logística de transporte de judeus, comunistas, socialistas, ciganos e outros para serem mortos nos campos de concentração. Homens, mulheres, velhos, crianças. Ele desempenhava sua função com maestria. Para Eichmann aquele era um serviço como outro qualquer. Cumpria suas metas, batia o ponto e ia para a sua casa onde tomava banho, jantava e, bem provável, rezava em companhia da família.
Na sua defesa disse que apenas cumpria ordens. E como bom funcionário público zelava para que as mesmas fossem fielmente executadas. Ao que parece Eichmann jamais matou alguém. Era apenas alguém que obedecia.
Essa incapacidade de refletir sobre seus atos, mesmo tendo participado ativamente da engrenagem que matou milhões de pessoas, é o que Hanna Arendt denominou a banalidade do mal.
E o que isso tem a ver com que foi dito acima sobre homossexuais, negros e mulheres? É que pessoas comuns, amigos nossos, aqueles que dizemos com orgulho “esse é um amigo do peito”, exaltam o discurso homofóbico do candidato à presidência Levy Fidelix, mas completam: “não sou homofóbico”. Até mesmo artistas como o cantor Lobão reverenciam tal figura. Da mesma forma, há aqueles que se batem contra as cotas, mas dizem: “não sou preconceituoso”. E há os que afirmam que o lugar de mulher é na cozinha e que são estupradas por causa das suas minúsculas saias ou vestidos. Contudo, ressaltam: “não sou machista”. Estes, tal como Eichmann, são pessoas simples, honestas, trabalhadoras. Entretanto, tal como Adolf Eichmann, são peças de uma terrível engrenagem criada para matar pessoas. Mesmo em vida.

quinta-feira, 10 de julho de 2014

Tempo perturbadores....

Vivemos tempos perturbadores. A reflexão parece estar sendo paulatinamente varrida do mapa. Entramos na era das "torcidas organizadas", mesmo quando não nos referimos ao futebol ou outra modalidade esportiva. Há os que têm dificuldades para refletir sobre o que está ocorrendo já que a realidade não se adéqua às suas formulações teóricas, assim como há aqueles que simplesmente se recusam a pensar. Estes são os mais perigosos. Xingamentos, acusações, uso da violência verbal ou física tomam conta do cotidiano. Não basta vencer é preciso destruir o adversário, seja ele um candidato às eleições ou um time. Processo alimentado cotidianamente por diferentes segmentos, mas não há como negar o peso brutal da mídia corporativa para a consolidação desse cenário.

No Brasil, quem é contra o governo federal ou o PT são contra e ponto final. Não conseguem identificar qualquer avanço alcançado nos últimos anos, pois reconhecer isto pode representar um "ato de fraqueza". Neste campo encontram-se desde neoliberais às extremas esquerda e direita. Quem é a favor também age da mesma forma, negando o fato de que o PT se tornou efetivamente um partido da ordem, que abandonou bandeiras históricas da esquerda como a reforma agrária, a democratização dos meios de comunicação ou a distribuição justa da riqueza produzida. Estes também se tornaram perigosos porque buscam de todas as formas amortecer os movimentos sociais que lutam pela transformação estrutural da sociedade brasileira.

Nas décadas de 1920 e 1930, portanto, entre as duas grandes guerras mundiais, o clima também era "pesado". O avanço do totalitarismo, a perseguição às minorias, o belicismo escancarado  - militar, na política e nas relações sociais -, a profunda crise econômica, as catástrofes humanitárias, a perda do glamour da noção de progresso, elemento político-ideológico fundamental na própria constituição do capitalismo, resultaram, entre outras consequências na renovação profunda do pensamento: a Escola de Frankfurt, a psicanálise, as contribuições de Fernand Braudel e de Antonio Gramsci, além de muitas outras. Contudo, esse processo de renovação reflexiva exigiu de seus formuladores que não se rendessem aos fatos, que fugissem do "efeito manada" e não se diluíssem nas "torcidas organizadas". Como nos diz uma certa análise do filósofo italiano Aganben, que eles não fossem completamente contemporâneos ao seu tempo.

Nosso tempo é o tempo da "guerra contra o terror", da mercantilização da natureza, da transformação do meio ambiente em ativos econômicos, da gestão neoliberal da segurança pública, da criminalização dos movimentos sociais, do poder incontrolável das grandes corporações econômicas, do descolamento cada vez maior do setor financeiro da economia real, do crescimentismo econômico como a nova utopia da esquerda, do neoextrativismo, do recrudescimento das ideologias totalitárias, da xenofobia etc. Ser contemporâneo desse tempo é, em suma, abandonar generosas utopias, crer que chegamos ao fim da história, é render-se completamente ao capitalismo e suas mazelas. Por isso não podemos estar acomodados - mentalmente, de modo especial - a estes tempos perturbadores que tentam sufocar a reflexão.

Todavia, é também o tempo do Buen Vivir, da luta feminista, da crescente capacidade de mobilização do movimento socioambiental, da afirmação de identidades e da solidariedade internacionalista, entre outros. A estratégia "torcida organizada" na política e em outras formas de relação social jamais será positiva para quem acredita que a história está em aberto, que vivenciamos um período espetacular de bifurcação histórica, onde todos os caminhos são possíveis, dependendo somente das nossas próprias decisões sobre para onde queremos seguir.

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Ambiente envenenado.

Parece evidente que a oposição política de viés conservador no Brasil sobrevive graças, fundamentalmente, ao intenso trabalho da mídia corporativa. Esta sim demonstra ser o principal partido arregimentador das forças retrógradas que combatem sistematicamente tanto o Partido dos Trabalhadores à frente do governo federal quanto as organizações de vertente anticapitalistas. É bem verdade que o PT colhe o que plantou. Aliás, o que deixou de plantar posto que renunciou completamente à luta pela democratização dos meios de comunicação durante os mandatos de Lula e Dilma Roussef. Somente agora, por conta dos virulentos ataques contra a re-candidatura da atual mandatária, é que se ouve expoentes do partido balbuciarem algumas palavras nesse sentido.

O veneno está disseminado na sociedade brasileira. Jornalistas defendem publicamente a execução de linchamentos; o "medo do comunismo" voltou a ser utilizado como arma de combate contra quem ouse defender algo que mesmo de longe fira os interesses das grandes corporações midiáticas e de grupos empresariais brasileiros ou transnacionais - o macarthismo não morreu! -; as forças de repressão do Estado são utilizadas para reprimir qualquer ato de transgressão da ordem, mesmo quando realizadas pacificamente; movimentos sociais e suas lideranças são criminalizados; os conflitos sociais são judicializados pelos grupos conservadores porque sabem que controlam essa arena; direitos conquistados pela sociedade com muita luta e esforço sucumbem diante da lógica do mercado; a mercantilização da vida avança a passos largos, restringindo, inclusive, a própria ideia de cidadania que passa a ter o consumo como o seu equivalente; noções como desenvolvimento e progresso servem de sustentação para toda sorte de abusos contra povos indígenas e comunidades tradicionais, bem como servem de base político-ideológica para justificar a destruição da natureza; o fanatismo religioso ganha cada vez mais espaço no legislativo e seus adeptos realizam perseguição implacável contra os direitos das mulheres, homossexuais e os afro-religiosos, entre outros. Há quem defenda abertamente o retorno da ditadura. A sociedade deve aceitar a justificativa de que isto se trata do exercício da liberdade de expressão? Tal como os alimentos que consumimos, o ambiente social brasileiro segue perigosamente envenenado.
O medo é uma arma à disposição de grupos de diferentes
matizes políticos e ideológicos
Entretanto, o veneno também é expelido por aqueles que fazem a defesa do bloco de poder e do projeto político que comanda o Estado brasileiro na atualidade. No Brasil, fazer oposição a esse bloco de poder a partir de uma plataforma anticapitalista significa sofrer toda sorte de "constrangimentos": enfrentar processos ou ser alvo de calúnias e/ou difamação - vide o caso das integrantes de movimentos de mulheres que lutam contra a construção da hidrelétrica de Belo Monte, em Altamira, no Pará. Para quem afirma que o que digo é um exagero lembro ainda os casos das duas lideranças indígenas recentemente presas pela Polícia Federal. Uma delas, inclusive, foi impedida de assistir a canonização do padre Anchieta, em Roma. A  outra foi acusada por fazendeiros da Bahia de incitar "ações criminosas" contra a sagrada propriedade privada e foi devidamente "enquadrada".

O combate promovido pelos defensores do projeto capitaneado pelo PT é generalista ao ponto de enquadrar toda a oposição num único bloco: os "coxinhas". Essa generalização, evidentemente, pasteuriza os conteúdos da crítica, transformando-os em algo insípido e incolor. Nesse sentido, atinge plenamente seu objetivo político: igualar a todos como retrógrados. Dessa forma, contribuem para o envenenamento do ambiente social brasileiro, pois não se abrem ao debate verdadeiramente necessário sobre para onde queremos ir e por qual caminho.

sábado, 10 de maio de 2014

Quem nos protegerá dos nossos protetores?

A frase acima aparece na fala de uma personagem do livro de Dan Brown intitulado Fortaleza Digital. Um pouco antes de morrer tal personagem lança esse petardo contra o seu algoz.Tudo porquê este justifica seus atos criminosos afirmando que os mesmos foram executados para proteger o povo. A lembrança me veio à mente ao ler diversas matérias publicadas pela mídia corporativa do nosso país sobre o processo eleitoral deste ano, bem como sobre a situação dos presos do denominado "mensalão". Qual o motivo dessa lembrança?

As famílias que controlam os principais grupos de comunicação do Brasil vêm sistematicamente atuando à margem da lei para fazer valer os seus próprios interesses e de poderosos grupos empresariais do Brasil e do exterior que querem levar o PSDB e seus aliados novamente ao comando do governo federal, particularmente o setor financeiro. Os sistemáticos ataques a fim de não permitir que José Dirceu cumpra o regime semi-aberto é um desses atos criminosos. Câmeras escondidas, pressões sobre o Supremo Tribunal Federal, que candidamente se submete, notícias falsas, perseguições, acusações infundadas, denúncias sem qualquer prova - lembram da suposta escuta telefônica no gabinete do ministro Gilmar Mendes que, aliás, nunca foi encontrado -, sonegação do direito de resposta etc., ocorrem todos os dias em todos os (tele)jornais, revistas, sites e outros meios.

Essa imprensa se coloca como a porta-voz de uma nunca bem definida "opinião pública". Dessa forma, se apresenta como a mais fiel defensora das liberdades democráticas e do Estado de Direito, mesmo violentando-os cotidianamente. Essa mesma imprensa que censura os segmentos sociais  que se colocam contra o capitalismo e suas mazelas, que chantageia para auferir vantagens econômicas, que promove violenta perseguição contra lideranças populares e suas organizações, criminalizando-as, ela mesmo se auto-proclama porta-voz da "opinião pública" e defensora da sociedade. Qualquer semelhança com os discursos proferidos durante a ditadura militar não é mera coincidência. Diante disso, a pergunta se impõe: Quem nos protegerá desses nossos protetores?

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

VIVEMOS UM DEJÀ VU?
Guilherme Carvalho*

É muito comum vivermos certas situações que parecem repetir algo que já havíamos experimentado. Essas ocorrências são denominadas dejà vu, um termo da língua francesa que significa já visto. Ocorre, porém, que essa sensação de já ter vivido um determinado evento parece não se restringir ao campo estritamente pessoal, mas se estende à nossa vida em sociedade. Daí alguns identificarem a história humana como um ciclo em seu movimento de auge e de queda, ou ainda como um círculo que nos faria prisioneiros de um eterno retorno. Consideramos ambas perspectivas limitadas para compreendermos a complexidade do real. Todavia, é forçoso reconhecer que alguns fatos persistem de tal maneira ao longo do tempo que parecem se constituir numa reprodução infinita do mesmo.
O assalto ao poder pelos militares brasileiros em 1964 foi justificado por eles como uma medida necessária para livrar o país da ameaça comunista. Para isso contou com a colaboração de grandes grupos públicos e privados de comunicação, de parcelas majoritárias do judiciário, do empresariado e do parlamento, de vários segmentos da sociedade civil nacional, bem como do apoio logístico e de informações dos Estados Unidos.
Presidentes militares
Além da ameaça comunista os militares buscaram incutir na população a ideia de que somente eles seriam capazes de garantir as condições necessárias para fazer o país progredir. O discurso do progresso foi, portanto, uma importante ferramenta ideológica para atrair o apoio da população às ações repressivas desencadeadas pelo bloco de poder que se apoderou do aparelho do Estado contra os opositores do regime, às restrições à liberdade e aos planos macroeconômicos.
Em nome desse suposto progresso a Amazônia foi definitivamente escancarada aos conglomerados econômicos nacional e internacional através da abertura de grandes rodovias como a Transamazônica, concessão de fartos subsídios para a instalação dos mesmos na região, criação de facilidades que garantiram o monopólio de vastas extensões do território amazônico aos setores que compunham o bloco de poder capitaneado pelos militares etc. O Estado brasileiro foi fundamental para o bom êxito dessa estratégia de ocupação e de controle territorial. Todavia, as consequências disso tudo não foram pequenas e repercutem ainda hoje:
Que lições podem ser extraídas da política regional de ocupação do território? O privilégio a ser atribuído aos grandes grupos e a violência da implantação acelerada da malha tecno-política, que tratou o espaço como isótropo e homogêneo, com profundo desrespeito pelas diferenças sociais e ecológicas, teve efeitos extremamente perversos nas áreas onde foi implantada, destruindo, inclusive, gêneros de vida e saberes locais historicamente construídos. Essas são lições a aprender como não planejar uma região. (BECKER, 2005, p. 26)
Eis que entramos no túnel do tempo e surgimos em pleno governo de Dilma Roussef. Dois meses antes da realização da Conferência Rio+20 a presidente da República reuniu-se com organizações da sociedade civil integrantes do Fórum do Clima, no Palácio do Planalto. Em resposta às críticas suscitadas pelo fórum em relação à política do governo federal de construir novas hidrelétricas na Amazônia, a presidente foi enfática: o governo não mudará sua estratégia de aumentar a oferta de energia utilizando o máximo possível o potencial dos rios amazônicos. A presidente foi além. Disse aos ambientalistas que “o mundo real não trata de tema ‘absurdamente etéreo ou fantasioso’”. Afirmou ainda que ninguém “numa conferência dessas também aceita, me desculpem, discutir a fantasia. Ela não tem espaço para a fantasia. Não estou falando da utopia, essa pode ter, estou falando de fantasia” (BNDES DÁ NOVO CRÉDITO..., 2012, não paginado). Para finalizar, assegurou que trabalharia pelo desenvolvimento sustentável, para tirar as pessoas da pobreza e tentar compatibilizar progresso e respeito ao meio ambiente.
Hidrelétricas na Amazônia
Também o ministro das Minas e Energia, Edson Lobão, recorre reiteradamente à defesa do progresso e do desenvolvimento da Amazônia para rebater as críticas de diferentes segmentos sociais do Brasil e do exterior preocupados com os impactos do erguimento de dezenas de barragens previstas para a região até 2050. A defesa do progresso, portanto, tem servido de anteparo a qualquer questionamento à intenção do Estado brasileiro e, evidentemente, de grandes conglomerados econômicos nacionais e internacionais de tornar a Amazônia a província energética brasileira, sem que se saiba ao certo as consequências dessa iniciativa não somente para a região, mas para o clima de todo o planeta.

Na coletânea de poemas intitulada Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles, há uma linda referência sobre a liberdade, onde afirma ser esta um sonho humano que ninguém consegue explicar, mas que não há quem não entenda (MEIRELES, 2005). O que aconteceria se substituíssemos a palavra liberdade por progresso? Quem em sã consciência não almeja progredir? Quem não entende o que ela significa? Todavia, o que ela significa?
Progresso é uma daquelas palavras que se encontra estreitamente vinculada à “credibilidade ou ao poder de quem a pronuncia” (DUPAS, 2006, p. 17). Afinal de contas, quem determina o “rumo” do progresso? Dupas recorre à fala do “gnomo irascível Humpty Dumpty”, presente em Alice no país das maravilhas, escrita por Charles Lutwidge Dodgson e publicada em 1865, para refletir sobre essa questão:
Quando utilizo uma palavra, ela significa precisamente aquilo que eu quero que ela signifique. Nada mais, nada menos’. Alice contesta que ‘o problema está em saber se é possível fazer que uma palavra signifique montes de coisas diferentes’. Ao que Humpty Dumpty replica ativamente: ‘O problema está em saber quem é que manda. Ponto final’ (LALANDE apud DUPAS, 2006, p. 17, grifo do autor).
Parlamentares, mídia, pessoas comuns e mesmo o judiciário também utilizam o progresso como uma espécie de vacina que imuniza as hidrelétricas e qualquer outro grande empreendimento, publico ou privado, de contestações de todo tipo; na grande maioria das vezes independentemente da justeza e/ou embasamento dos questionamentos. Que o digam os pesquisadores que integraram o Painel Independente de Especialistas, cujas conclusões chocaram-se frontalmente com diversas afirmações do Estudo de Impacto Ambiental apresentado pelas empresas interessadas na construção da usina de Belo Monte, no rio Xingu.
O fato é que o progresso se tornou parte constitutiva do discurso do poder. Assim foi durante a ditadura militar no Brasil, nos governos Juscelino Kubitschek, Eurico Gaspar Dutra e Getúlio Vargas; nos primórdios da República com o lema Ordem e Progresso incrustado na bandeira nacional e mesmo durante o Império. Da mesma forma, a palavra progresso foi utilizada pelas diferentes coalizões de poder que estiveram à frente do Estado brasileiro após a redemocratização do país para afirmarem-se diante da população e delas conquistar o reconhecimento e apoio.
É a partir da noção de progresso que a Amazônia tem sido refletida pelas coalizões de poder que estiveram à frente do Estado brasileiro até o presente momento, assim como fundamenta a implementação do atual modelo hegemônico de desenvolvimento, cuja característica é basear-se na exploração intensiva dos recursos naturais aqui existentes. O progresso, então, assume o papel de servir como um ponto de inflexão, de separação entre o antes e o depois, entre retrocesso e avanço, entre passado e futuro. Exemplo: a Amazônia é atrasada daí ser necessário levar o progresso a ela para que a mesma seja definitivamente integrada ao restante do território nacional, através do estímulo ao deslocamento de empreendedores para o seu território, assim como do capital necessário para desenvolvê-la. Tal visão pode ser encontrada como fundamento das políticas dos governos Vargas, Médici e, mesmo, de Dilma Roussef, entre outros.
Que progresso?
Fica evidente que progresso também guarda um sentido civilizatório. É como se o mesmo fosse um ato de redenção de povos primitivos, ou de sociedades atrasadas. Para que tal perspectiva se imponha é necessário que seja estabelecida alguma referência do que se considera “estágio avançado”. Por muito tempo essa referência foi a Europa, agora, a designação genérica são os países “desenvolvidos”. À Amazônia resta espelhar-se na dinâmica econômica do centro-sul do Brasil ou de outros países e tentar, quem sabe, rumar em direção a elas, tal como preconizado por Rostow (1978) e sua ideia do desenvolvimento em etapas. Apesar de ficar cada vez mais evidente que não há lugar para todos no banquete do progresso, como bem demonstrado por Chang (2004). O progresso é utilizado para justificar o discurso hegemônico da acumulação. Todavia, a promessa de um futuro próspero se vê permanentemente confrontada com a situação precária de parcelas significativas da população.
Vivemos um dejà vu? Hoje como ontem o Estado brasileiro se apresenta como o grande impulsionador da apropriação privada de grandes extensões do território amazônico e de seus recursos, em detrimento dos interesses e dos modos de vida de povos indígenas e populações tradicionais – ribeirinhos, extrativistas, agricultores familiares e outros. Também utiliza o forte aparato repressivo para coagir, impedir e criminalizar movimentos sociais e ONGs que se opõem a este modelo de desenvolvimento intensivo no uso da terra, água e outros componentes da natureza e, acima de tudo, disseminador de conflitos e gerador de crescentes desigualdades socioambientais. Como antes se tenta passar a ideia de que o mercado – suas instituições e suas regras – serão capazes de fazer com que a Amazônia se desenvolva, retirando milhões de amazônidas da pobreza. Cinquenta anos depois da instalação da mais brutal ditadura no Brasil a reprodução do mesmo parece não ter fim.

Bibliografia
BECKER, Bertha. Amazônia: nova geografia, nova política regional e nova escala de ação. In. Amazônia Sustentável: Desenvolvimento sustentável entre políticas públicas, estratégias inovadoras e experiências locais / Martin Coy e Gerd Kohlhepp (coord.). – Rio de Janeiro : Garamond ; Tübinger, Alemanha : Geographischen Instituts der Universität Tübingen, 2005. p. 23-44.
BNDES dá novo crédito de R$ 2,5 bi a Jirau. O Estado de São Paulo, 28 set. 2012. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,bndes-da--novo-credito-de-r-25-bi-a-jirau, 937061,0.htm>. Acesso em: 13 out. 2012.
CHANG, Ha-Joon. Chutando a escada: a estratégia de desenvolvimento em perspectiva histórica. Tradução de Luiz Antônio Oliveira de Araújo. São Paulo: UNESP, 2004.
DUPAS, Gilberto. O mito do progresso, ou progresso como ideologia. São Paulo: UNESP, 2006.
MEIRELES, Cecília. Romanceiro da Inconfidência. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
ROSTOW, W. W. Etapas do desenvolvimento econômico. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1978.




* Doutor em Ciência do Desenvolvimento Socioambiental pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará – NAEA/UFPA e coordenador da ONG FASE Programa Amazônia.