De
acordo com o dicionário canalhice
é
o comportamento
característico de canalha,
que
não tem caráter ou
ainda dito
ou ação de quem é canalha.
Na linguagem popular, nua e crua, canalha é aquela figura escrota,
sem
vergonha,
que faz de tudo pra se dar bem, passando por cima de quem quer que
seja pra atingir seus objetivos. O canalha é, portanto, uma pessoa
desprezível. Pois bem, o Brasil do golpe de Estado evidenciou quatro
tipos de canalhices, entre tantas outras, profundamente engajadas na
trama que possibilitou a um bando ascender ao comando do Estado. São
elas: 1) A canalhice
intelectual;
2) A canalhice
midiática;
3) A canalhice
judicial,
e; 4) A canalhice
político-partidária.
A
canalhice intelectual
O
processo que levou ao golpe de Estado no Brasil contra a então
presidenta Dilma Roussef contou com a renhida participação de parte
da intelectualidade brasileira, que muito se esforçou para
apresentar "justificativas racionais" à quebra da
democracia em nosso país. Num de seus livros o professor Jessé
Souza afirma que "a 'ciência' - e os cientistas e especialistas
que a incorporam - é, atualmente, quem herda o 'prestígio' das
grandes religiões do passado e diz o que é certo e o que é
errado".
Ou seja, tal como ocorria há seculos atrás, boa parte da
intelectualidade de hoje se considera portadora da verdade por
manusear procedimentos considerados capazes de desvelar o real, mesmo
que isso se dê a partir de construção de dicotomias e
negligenciando outros saberes. Todavia, é importante ressaltar que
isso vem mudando aos poucos. Voltemos
ao professor Jessé Souza. Este critica a “inteligência
brasileira” por dar suporte intelectual a projetos políticos
promotores de desigualdades e fomentadores de privilégios a uma
minoria:
(…)
A reprodução de todos os privilégios injustos no tempo depende do
‘convencimento’, e não da ‘violência’. Melhor dizendo, essa
reprodução depende de uma ‘violência simbólica’, perpetrada
com o consentimento mudo dos excluídos dos privilégios, e não da
‘violência física’. É por conta disso que os privilegiados são
os donos dos jornais, das editoras, das universidades, das TVs e do
que se decide nos tribunais e nos partidos políticos
Pensemos
para tanto nos inúmeros artigos veiculados pela mídia corporativa e
assinados por cientistas políticos, jornalistas, empresários,
membros do judiciário e de partidos políticos, todos corroborando
com a violência institucional empreendida no país, buscando
torná-la palatável e mostrá-la como sendo perfeitamente obediente
às regras legais. Entretanto, a gravação de um telefonema do
senador Romero Jucá (MDB/RR) evidenciou que o golpe de Estado nada
mais era que um projeto político de poder envolvendo altas esferas
do executivo, legislativo e judiciário; com o beneplácito das
forças armadas, de grandes corporações econômicas (nacional e
transnacional) e de governos como o dos Estados Unidos.
A
canalhice
midiática
O
golpe de Estado no Brasil seria impossível sem a participação
efetiva e militante dos grandes grupos familiares de comunicação,
tendo a Globo à frente de todo o processo. De acordo com o
jornalista Luis Nassif:
Para
se chegar ao estagio atual do estado de exceção, não se imagine um
movimento coordenado, centralizado, com alto comando e estratégias
previamente definidas.
Há
um fato inicial que deflagra o processo e alguns agentes indutores –
como foi o caso da colaboração da Lava Jato com o DHS dos Estados
Unidos. Mas a base foi o antipetismo e os movimentos de rua
estimulados pela Globo.
O
fato é que o PT acovardou-se e não realizou o que determina a
Constituição Federal em relação à regulamentação do setor.
Afagou o cão que depois o atacou raivosamente. Não há qualquer
possibilidade de termos uma verdadeira democracia no Brasil com a
mídia completamente cartelizada, sob controle de alguns grupos
familiares. É simplesmente impossível. Por outro lado, o partido
não pôs em prática as decisões aprovadas nas conferências de
comunicação.
O
jogo sujo da mídia não somente contra o PT, mas contra todos os
partidos de esquerda e movimentos sociais do país que lutam por
mudanças estruturais é sobejamente conhecido. De mãos dadas com o
judiciário promove a criminalização de organizações e seus
dirigentes, perseguindo-os diuturnamente. Lançam suspeitas,
“constroem” evidências e versões e finalmente condenam. Tal
qual um tribunal de exceção lançam suas vítimas aos porões. Ou
aprendemos as lições que a conjuntura nos oferece, ou corremos o
risco de sermos vítimas das nossas próprias inconsequências e/ou
omissões.
A
canalhice
judicial
Segundo
Rafael Valim, professor
da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC/SP), o Brasil vive atualmente um estado
de exceção.
Ele desenvolveu esse ponto de vista em recente publicação na qual
expôs o problema de forma didática, capaz de ser compreendido por
leigos que não estão habituados aos “salamaleques” jurídicos.
De acordo com o professor:
Nos
Estados Unidos e na Europa, notadamente a partir de 11 de setembro de
2001, a noção foi amplamente disseminada para explicar a adoção,
a título de combater o terrorismo, de medidas de emergência
francamente atentatórias aos direitos fundamentais e áreas de
“não-direito”, de que é exemplo eloquente Guantánamo.
No
universo latino-americano, por sua vez, a exceção se prestou ao
esclarecimento de diversas realidades, entre as quais podemos citar
as providências do Estado colombiano para enfrentar organizações
paramilitares, as medidas de emergência econômica na Argentina
durante a década de 90 do século passado e, mais recentemente,
decisões judiciais, de natureza reconhecidamente excepcional,
proferidas por autoridades judiciárias brasileiras a pretexto de
“combater” a corrupção, a que se tem denominado “estado de
exceção judicial”.
O
professor Valim busca a partir da perspectiva da ciência
política, da sociologia e da filosofia mostrar as diferentes
maneiras de se caracterizar o estado
de exceção.
Fica evidente ao leitor que o
termo estado
de exceção
vem sendo empregado para explicar diversos “fenômenos
aparentemente tão heterogêneos”. Contudo, o que Valim parece
querer evidenciar é que o tal estado
de exceção
visa fundamentalmente garantir que os interesses do grande capital,
em especial do setor financeiro, sejam atendidos plenamente por
aqueles que estão à frente do aparelho do Estado.
O
estado
de exceção
abala um dos pilares do Estado de Democrático de Direito que é a
soberania
popular.
Subverte-se, assim, a “concepção
de que toda e qualquer autoridade – administrativa, legislativa e
judiciária – é mera mandatária do povo e, por esta razão, deve
atuar nos limites da Constituição e das leis, abrindo-se um
perigoso espaço para o voluntarismo,
o que constitui, aliás, o sentido
genealógico
do estado de exceção”.
A judicialização dos conflitos passa então a preponderar sobre as
resoluções políticas. Aliás, essa judicialização aprofunda a
despolitização
da política
ao alimentar na população a ojeriza aos partidos e às
instituições, cotidianamente alimentada pela mídia corporativa. A
corrupção passar a ser o grande problema nacional e o seu combate
deve ser realizado a qualquer custo, mesmo que isto signifique
colocar em xeque a própria democracia.
A
despolitização
da política
também é funcional aos interesses das grandes corporações, pois o
mundo ideal para eles é a separação entre e economia e a política,
buscando tornar a primeira intocável. Ou seja, nesse mundo ideal dos
monopólios a democracia passa a se constituir numa mera formalidade,
pois “as bases macroeconômicas” não poderão ser alteradas,
independentemente dos mandatários de plantão.
Um Estado fraco diante das grandes corporações é o que se pretende
alcançar. Contudo, um Estado que seja capaz de enfrentar as
resistências a esse projeto:
Nesse
sentido, à
impotência da política perante a economia deve corresponder um
aumento de sua potência em relação à sociedade.
Nas palavras de Laymert Garcia dos Santos, o mercado ‘precisa,
evidentemente, de um Estado fraco como instância de decisão e
formulação de política, mas forte como organismo gestor de
população e dispositivo de controle social’. Ou seja, a ruptura
dos laços entre representantes e representados deve ser acompanhada
do incremento da violência estatal e do esgarçamento, aberto ou
dissimulado, do tecido constitucional.
No
caso do Brasil, o golpe de Estado desferido contra a democracia teve
no judiciário um de seus principais sustentáculos: “(…) Um
poder judiciário que, juntamente com a grande mídia, são os
operadores reais do ‘golpe institucional’ que implantou no Brasil
em maio de 2016”.
O judiciário brasileiro é o mais inóspito a qualquer tipo de
transparência, o poder capaz de subjugar os demais, o mais avesso às
luzes. Este e a mídia corporativa se tornaram partidos políticos
poderosos na condução da nação, sem que tenha sido outorgado a
eles qualquer atribuição para tal. Sobreviverá a democracia em
nosso país?
A
canalhice político-partidária
A
estrutura partidária no Brasil é uma verdadeira balburdia. Alguns
partidos com posições ideológicas firmadas convivem com uma
enxurrada de agremiações de aluguel, cujo único propósito é
auferir vantagens, lícitas e ilícitas, aos seus dirigentes e
apaniguados. Faz-se necessário, portanto, uma profunda reforma
política que garanta as correções necessárias a esse modelo que
incentiva e promove corrupção de todo tipo. Aliás, a reforma
política é bandeira de luta de diversos movimentos sociais
brasileiros.
Por
outro lado, neste início de século vivenciamos uma profunda crise
da democracia liberal, percebida inclusive por segmentos que a
defendem. Veja, por exemplo, reportagens sobre o assunto lançadas
por publicações como
o The Economist
e evidenciada por jornalistas brasileiros:
O
problema do Brasil não é o ultra liberalismo. É a ignorância
crassa de quem se pretende porta-voz do liberalismo. É imensa a
distância que separa The Economist e a mídia brasileira, o
pensamento liberal consistente desse arremedo de mercadismo liberal
brasileiro.
O
editorial do The Economist apenas reforça o que foi dito por vários
ex-primeiros ministros europeus – da Alemanha, França, Espanha e
Itália – em visita recente ao Brasil. Todos foram claros em
mostrar a grave crise enfrentada pela democracia, o embate entre a
civilização e a barbárie na Europa e, principalmente, a
importância das eleições brasileiras para o equilíbrio
democrático global.
O
Congresso Nacional foi essencial no golpe de Estado ocorrido no
Brasil. Os discursos hipócritas lançados contra a presidenta Dilma
Roussef só evidenciaram a podridão do nosso sistema político. Como
nos diz Rafael Valim o neoliberalismo torna a democracia liberal numa
retórica vazia,
tornando-a impotente
diante do poderio do mercado.
A
despolitização
da política
é essencial ao projeto de dominação das elites. Recuperar o seu
sentido mais profundo é tarefa primordial dos que lutam por um
Brasil melhor, mais justo e solidário. Eis que a situação vivida
no Brasil e em outras partes do mundo demonstram cabalmente o
descompromisso de tais elites com a democracia. É nosso papel
reverter esse quadro, democratizar a democracia, revolucioná-la. Ela
não é algo secundário, mas é parte integrante e fundamental dos
nossos projetos de sociedade.
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