segunda-feira, 26 de outubro de 2015

A tolerância com a intolerância gera mais intolerância.

Tempos difíceis. Jovens fazem loas à ditadura militar, acusam o governo federal de comunista e os defensores dos direitos humanos de fazerem o jogo dos bandidos. O motivo: uma questão da prova do ENEM que fazia referência ao livro O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, publicado em 1949, a fim de tratar do grave problema da violência contra a mulher no Brasil. Argumentos absurdos e estúpidos se materializaram em bites,tinta, desenhos, vídeos e áudios. Alguns pregaram raivosamente a desideologização da educação, outros denunciaram a ameaça à liberdade de pensamento. Os mais criativos, porém, alertaram para o complô em andamento no intuito de implantar no Brasil uma não explicada e enigmática ditadura bolivariana. Tais indivíduos se mostram ignorantes, no sentido pleno da palavra, a algo fundamental: o machismo mata! O machismo não é um recurso de retórica, um mal entendido entre homens e mulheres, tampouco uma "brincadeirinha". Machismo é uma forma de poder, de dominação, de controle de homens sobre as mulheres. E em muitos casos, infelizmente, se transforma em crime da pior espécie. Desconhecer isso é viver numa realidade paralela, a-histórica, sem nexo com a realidade.

Para combater as ações da bancada evangélica no Congresso Nacional que, aliada às "bancadas da bala e do boi", denominada de BBB, vêm aprovando um conjunto de leis retrógradas, que atentam contra os direitos das mulheres, dos praticantes das religiões de matriz africana, dos povos indígenas e populações tradicionais, entre outros, segmentos sociais considerados progressistas incorrem algumas vezes na mesma lógica de intolerância. Abundam na internet mensagens, artigos, piadas etc., identificando os evangélicos como o mal encarnado. Contudo, é um absurdo acreditar que Silas Malafaia, Edir Macedo, Marcos Feliciano, Evaldo Pereira e Valdemiro Santiago falem em nome de todos.

Em São Paulo o ódio ao PT faz com que ciclistas sejam chamados de comunistas por motoristas descontentes em perder espaços nas ruas; que a mídia corporativa, parte da população e o Ministério Público Estadual vociferem contra o fechamento da Avenida Paulista aos domingos para o lazer de muitas famílias, mas que se mantêm "comportadas" quanto ao fechamento de centenas de escolas públicas por parte do governo estadual, bem como que a administração municipal seja violentamente atacada por implementar dispositivos do Estatuto da Cidade para coibir a especulação imobiliária. Ou seja, algo que é fundamental para o bem-estar de toda a população é combatido por conta de uma visão distorcida e retrógrada da luta política.

Seria possível citarmos uma quantidade enorme de exemplos. Todavia, o que nos interessa tão somente é sublinhar o perigo que nos ronda neste momento. A disseminação de ideias e comportamentos intolerantes no cotidiano da sociedade, devidamente alimentada pelas frações dominantes para legitimar suas iniciativas e interesses particulares. O medo, essa arma poderosa, vem sendo utilizada com maestria para que tais fins sejam atingidos.

Sem a intenção de abarcar todas as possíveis características do pensamento e do agir intolerantes, apresentamos abaixo o passo a passo do "intolerante  fashion", bem sucedido. Ou, os dez mandamentos dos BBBs:
  1. Identifique precisamente o segmento social a ser considerado inimigo: negros(as), indígenas, petistas, comunistas, evangélicos, umbandistas, mulheres, homossexuais ou outros.
  2. Identifique esses segmentos com os males que atingem a todos.
  3. Ressalte seus pontos negativos, mesmo que tenham que ser forjados e martele-os diuturnamente, principalmente pelos meios de comunicação de massa.
  4. Reconstrua o passado e torne o presente como algo excepcional. Exemplo: "nunca houve tanta corrupção como agora".
  5. Apresente-se como a única solução possível.
  6. Generalize, generalize sempre. Não apresente nada muito concreto. A superficialidade é essencial para construir um discurso que atinja a todos. Cada um deve pensar que você está falando diretamente a ele/ela.
  7. De vez em quando lance as mais loucas ideias ou faça o discurso mais agressivo. As palavras e a tonalidade com que são expressas rendem bons dividendos.
  8. Faça o uso intensivo de estatísticas. Números, mesmo quando falseados, passam a ideia de domínio, de segurança.
  9. Mostrar-se como uma pessoa religiosa, defensora dos bons costumes e da família, ou mesmo da pátria, ajuda bastante.
  10. Diga aos quatro ventos que você odeia a política, os políticos, o sistema e o governo. Isso é tiro e queda. A despolitização da política é o combustível de todos os mandamentos anteriores.
Por fim, segue uma poesia que fiz num momento de pessimismo da razão, mas de otimismo na vontade. Como assinalou certa vez Gramsci. Os/As intolerantes que me perdoem...



quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Fico pensando...

Defendo o ponto de vista de que uma das grandes diferenças históricas entre a estratégia petista para alçar essa parcela de poder que é o executivo federal e as anteriores realizadas por partidos ou forças políticas de esquerda é que na primeira, além de ter conseguido "chegar lá", reside o fato de que o PT, seus dirigentes e grupos que controlam efetivamente o partido, passaram a se constituir em parte das elites dominantes no país. Nas experiências anteriores da esquerda, imersas na ideia de apoio a uma burguesia nacional não-imperialista, de luta contra um modelo feudal ou na convicção de que o país deveria passar por um "choque" capitalista, as forças de esquerda sempre estiveram a reboque, caudatárias mesmo, de poderosos grupos políticos e econômicos do Brasil e do exterior.

Com o PT a situação é diferente. Recomendo o leitura do livro escrito pelo uruguaio Raul Zibeck, intitulado Brasil Potência. Nele está registrado de modo muito interessante como o PT se preparou para chegar ao poder. O papel dos fundos de pensão na modernização do capitalismo brasileiro e o controle sobre eles exercido pelo partido, as mudanças ocorridas no mundo sindical, particularmente daquele segmento próximo ao PT, o controle da máquina governamental e por aí vai. Paulatinamente, ao longo dos anos, a elite petista, não dá pra estender isso ao conjunto da militância, passou a se constituir em parte orgânica da elite dirigente do país, as "classes dominantes". Essa é a diferença com processos pretéritos. Daí o porquê hoje é muito difícil contar com o apoio do partido às lutas contra o modelo neoextrativista de desenvolvimento, ou à expansão desenfreada de grandes projetos de infraestrutura na Amazônia. Dai ser cada vez mais difícil afirmar que ainda estamos do mesmo lado.

Entretanto, por mais contraditório que possa parecer, não é possível afirmar também que PT e PSDB são a mesma coisa. Não são. Há diferenças substanciais que precisam ser reconhecidas sob o risco de ignorarmos a complexidade do real. Por exemplo: O que seria do governo Morales (Bolívia) durante a retomada do controle do setor petroleiro num governo Aécio Neves? Ou as relações do nosso país com a Venezuela? Ou ainda com os Estados Unidos no que diz respeito à "guerra contra o terrorismo"? Na dimensão interna, o que seria da política de cotas? Haveria política de cotas? Em princípio isso pode parecer apenas penduricalhos diante da aplicação da ortodoxia macroeconômica, mas são mesmo questões insignificantes?

Por outro lado, há também confusão no que diz respeito ao nosso posicionamento em relação às tentativas da oposição de provocar o impeachment de Dilma Roussef. A defesa da democracia e de suas instituições - incluídas as nossas instituições como sindicatos, associações, fóruns, ONGs etc. - não é a defesa do governo. Ao nos posicionarmos contra o golpe desencadeado por forças conservadoras xenófobas, racistas e fascistas não estamos nos posicionando a favor do PT e seu bloco de poder, pois o que está em jogo não é o mandato presidencial, mas, fundamentalmente, o "ambiente" sob o qual queremos desenvolver as nossas lutas de resistência. Particularmente estou anos-luz de distância da concepção de que as crises levam necessariamente a uma situação melhor, em que o "povo assume as rédeas de seu destino". Os processos ocorridos no Egito e em outros países que passaram por intensas mobilizações a partir de 2010 no mínimo levantam dúvidas sobre tal ponto de vista. Isto ocorre justamente porque a "história é um livro em aberto". Ou seja, nada está dado de antemão. Podemos tanto avançar para uma situação qualitativamente melhor, como podemos regredir a uma situação de barbárie.

Então, temos que abrir mão das mobilizações e das iniciativas de reconstruir um bloco de esquerda no Brasil? Não! O PT e alguns de seus aliados não se colocam mais na perspectiva de destruir o capitalismo. Nessa questão fundamental já não comungamos das mesmas perspectivas. Contudo, se for preciso ir às ruas para lutar contra o impeachment lá estarei porque, como disse, o que está em jogo é muito mais que um mandato.

Fico imaginando cá com os meus botões o que teria acontecido se os comunistas e os sociais-democratas tivessem se unido contra os nazistas a partir do final da década de 1920. Não tem relação direta com o que foi escrito acima. Só fico pensando... Será?


segunda-feira, 19 de outubro de 2015

A "ética" pela metade. Ou a "ética" utilitária.

Ao olhar a grande quantidade de mensagens que circula pela internet criticando duramente a corrupção em nosso país chama atenção a seletividade dos questionamentos. De um lado, setores conservadores que querem o rompimento da ordem legal, exigindo a volta dos militares ao poder em nome "da família e da democracia", que acusam o governo federal e seus aliados de estarem envolvidos nos "piores escândalos de corrupção da história brasileira", são os mesmos que em cartazes afirmam que sonegação não é crime. Ou seja, defendem o questionável ponto de vista de que sonegar entre R$ 300 e R$ 400 bilhões de reais por ano é uma atitude normal já que, segundo eles, o Estado brasileiro e "inchado" e políticas sociais como o Bolsa Família são apenas estratégias de dominação dos setores "comuno-petitas" para se manterem no poder. São os mesmos que fecham os olhos para as maracutaias de Eduardo Cunha, presidente da Câmara dos Deputados, não batem panelas de seus apartamentos contra a corrupção do PSDB, do DEM, PPS e outros partidos que pregam o impeachment da presidenta Dilma Roussef, se opõem às cotas para estudantes negros(as), pregam diuturnamente que direitos humanos é só pra defender bandidos, que vivemos numa ditadura bolivariana e por aí vai. Jogam para debaixo do tapete o fato de que durante a ditadura civil-militar que dominou o país a partir do golpe de 1964 era simplesmente impossível realizar qualquer denúncia contra a corrupção dos poderosos de plantão. Certa vez o jornalista Lúcio Flávio Pinto publicou matéria em que citava uma afirmação de Delfim Neto, ex-todo poderoso da economia, de que somente na construção da hidrelétrica de Tucuruí foram desviados mais de R$ 1 bilhão de reais. Daí o ódio dos conservadores pela história, tentando a todo custo reinterpretá-la para atender aos seus interesses mesquinhos e autoritários. Ou alguém esqueceu da "ditabranda"? Esses setores amam a Operação Lava-Jato, mas odeiam a Zelotes, justamente a que coloca na mira da lei algumas das maiores fortunas do país por crime de sonegação.
De outro lado, porém, há segmentos sociais - entre eles os/as próprios(as) petistas - para quem o PT e seus aliados são meras vítimas da perseguição de poderosas elites golpistas que querem reconquistar a presidência da República. Para eles não houve corrupção na Petrobrás e em outras empresas estatais, o BNDES não foi utilizado como ferramenta para favorecer poderosos grupos empresariais brasileiros e transnacionais, conformando oligopólios em diferentes segmentos da economia; o partido não se beneficiou de esquemas de desvio de recursos públicos para garantir-se nas eleições e nem renegou bandeiras históricas de luta dos(as) trabalhadores(as) brasileiros(as). Afirmar o contrário é correr o risco de ser lançado à fogueira como um membro da direita.

Em ambos os casos a ética serve apenas como uma ferramenta da disputa político-ideológica, muitas vezes para justificar o injustificável. Nesse contexto a ética enquanto valor importante para a vida em sociedade definha a ponto de se tornar uma peça, cuja utilidade obedece ao cálculo político pragmático onde o conjunto perde em benefício de alguns "abençoados". Cunha não nos deixa mentir.