Numa troca de mensagens recentemente realizada com o meu amigo Sérgio Martins chegamos a um ponto comum: a democracia se tornou um estorvo ao grande capital. Evidentemente, muitas outras pessoas pensam da mesma forma. O juiz Rubem Casara, por exemplo, em seu livro Estado pós-Democrático: neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis, levanta uma questão da mais alta relevância: vivemos realmente num Estado Democrático de Direito? Segundo Casara, a racionalidade neoliberal colonizou o Estado e isto tem consequências brutais sobre quem sofre arbitrariedades de todos os tipos. Observem o que ele diz numa entrevista concedida a Sergio Rodas, da publicação Consultor Jurídico*:
A racionalidade neoliberal é esse modo de ver e atuar no mundo que faz com que tudo e todos sejam tratados como objetos negociáveis. Essa racionalidade colonizou o Estado, as instituições, as pessoas e inclusive o Direito, fazendo, por exemplo, com que as garantias fundamentais passassem a ser percebidas como obstáculos à eficiência do Estado ou do mercado. Em linhas gerais, pode-se dizer que a racionalidade neoliberal se caracteriza tanto por transformar o mercado em modelo de todos os relacionamentos como por seguir a lógica da concorrência e o ideal de ilimitação, instaurando-se uma espécie de "vale tudo" por dinheiro e sucesso.
Indagado se o Estado Pós-Democrático é uma tendência mundial, Casara respondeu:
É uma consequência necessária daquilo que vários teóricos chamam de racionalidade neoliberal. Isso se dá em todo o mundo. Por evidente, em países lançados em uma tradição autoritária, em democracias de baixa intensidade, a pós-democracia se instala de maneira quase imperceptível. Um país como o Brasil, no qual parcela considerável da população prefere apostar no uso da força em detrimento do conhecimento, marcado tanto pela naturalização da desigualdade e da hierarquização entre as pessoas quanto pelo medo da liberdade, a pós-democracia se instalou sem enfrentar resistência.
O fato é que o chamado jogo democrático marcado por eleições regulares (supostamente livres), revezamento no comando do Estado, implementação de políticas inclusivas, respeito às garantias individuais e coletivas, típicas do liberalismo, mesmo quando não colocadas verdadeiramente em prática, são consideradas cada vez mais como obstáculos à livre expansão do grande capital; melhor dizendo, ao livre controle de territórios e dos recursos neles disponíveis, das riquezas produzidas socialmente, da renda, do poder, das pessoas, da comunicação, dos pensamentos, dos comportamentos, dos afetos, dos imaginários... Enfim, uma sociedade onde a única regra seja aquela imposta pelo mercado desregulamentado. Nesta, a pulsão da morte é a diretriz que comanda as ações dos "donos do poder", dos blocos hegemônicos, pois nela já não há sentido para a existência de grande parte da humanidade, de modos de vida diferenciados, de diversidade de gênero, das variadas formas de professar a fé; vertente onde o racismo, o patriarcado, a xenofobia e a homofobia são negados. Alias, tal negação alcança a própria história e a ciência.
Neste cenário, mesmo governos cuja "utopia" seja a conciliação entre capital e trabalho, uma espécie de "capitalismo democrático", não servem. Contra eles também se estabelecem estratégias para constrangê-los, adequá-los, enfraquecê-los ou derrubá-los. As hordas alimentadas cotidianamente pelo ódio são o braço armado das novas bestas do Apocalipse. Elon Musk e Mark Zuckerberg estão aí para provar como funciona. Tudo em perfeita sintonia com os "falcões de Washington".
Certa vez o pensador Immanuel Wallerstein afirmou que a pior coisa para o próprio capitalismo é o mercado desregulamentado, pois o princípio de "todos contra todos" sem qualquer regramento tenderia a levar o sistema ao colapso. Sem o Estado, portanto, como o instrumento a garantir a defesa do sistema dele mesmo, não haveria futuro ao capitalismo. O Estado está fraco? A questão é: para quem? Se o Estado de nada valesse por qual motivo Musk assumiu funções precisas dentro do governo Trump? Ele não está lá somente por status. Da mesma forma que Milei (Argentina) também não está ou que Bolsonaro não esteve. Há um projeto político-ideológico articulado internacionalmente de aniquilamento de direitos, da apropriação em larga escala de recursos públicos pelo rentismo, de execução de uma economia de destruição onde a reprodução do modelo está fundado na violência e na destruição da natureza.
Fico aqui pensando cá com os meus botões: o que estarão pensando os mercadores do clima sobre tudo isso? Fico só pensando...
* https://www.conjur.com.br/2019-jun-02/entrevista-rubens-casara-juiz-criminal-rio-professor/
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