quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Não estamos preparadas(os).

No último dia 05 deste mês as Polícias Militar e Civil do Pará apreenderam um carregamento de armas pesadas no município de Abaetetuba, este localizado na mesorregião Nordeste Paraense, a cerca de 123 km da capital, vindas provavelmente do Suriname para abastecer grupos criminosos que atuam no estado. Foi a maior apreensão de fuzis realizadas em solo paraense: 16 fuzis, sendo 13 calibre 556 e 3 calibre 762. Em agosto, a Polícia Rodoviária Federal apreendeu 75 kg de cocaína que seguiam rumo a São Luís, no Maranhão. Em outubro foram 50 kg de cocaína apreendidas em Abaetetuba. Por sua vez, em abril deste ano a Polícia Federal realizou ações em sete estados brasileiros contra grupos criminosos especializados no envio de cocaína para a África e Europa, utilizando-se de barcos pesqueiros para tal empreitada. No Pará, a ação desenrolou-se em seis municípios: Vigia, Curuçá, Abaetetuba, Ananindeua, Belém e Altamira. Com exceção da capital, os demais são pequenos e médios municípios.

Apreensão de armamentos em Abaetetuba (PA)

O fato é que os grupos criminosos com fortes vinculações internacionais estão não somente disputando os grandes centros urbanos amazônicos, como Belém e Manaus, mas também pequenos e médios municípios estrategicamente localizados ao longo do rio Amazonas e seus afluentes. O Pará e o Amapá são importantes nessa disputa entre os cartéis por suas proximidades com o Oceano Atlântico. Pequenos municípios até então pacatos agora são atravessados por conflitos entre gangues. Eles controlam vicinais e ramais, a circulação de pessoas e carros nas comunidades e entre as comunidades, impõem toque de recolher e a lei do silêncio, interferem nas eleições. Além disso, ameaçam lideranças comunitárias e suas organizações.
Amazônia: grande rota do tráfico
internacional de drogas.
Povos indígenas e comunidades tradicionais enfrentam as pressões de narcotraficantes de uma forma nunca antes vista. Isto porque tais grupos apresentam-se cada vez mais organizados e articulados, desde os territórios até o plano internacional. Hoje, há muitos casos de jovens indígenas, quilombolas e outros envolvidos(as) com o crime organizado e mesmo sendo assassinados(as) por conta de dívidas com o tráfico. Quando tais grupos instalam-se numa comunidade e/ou território os modos de vida alteram-se radicalmente. O medo se impõe. Até mesmo as lutas de resistência em defesa dos territórios coletivos/comunitários sofrem baixa significativa. A divisão nas bases é estimulada e acentuada.
Um dos grande legados do governo Bolsonaro foi ter contribuído para alçar o crime organizado existente na região a um outro patamar. Agora, presenciamos verdadeiros consórcios do crime juntando narcotraficantes, contrabandistas, milicianos, grileiros, garimpeiros ilegais, desmatadores e outros. Financiamentos cruzados fortalecem as redes criminosas, implementam/utilizam logísticas e rotas comuns, constituem redes de proteção com diferentes segmentos do aparato estatal.
Ou seja, a defesa dos direitos socioterritoriais de povos indígenas e de comunidades tradicionais tornou-se ainda mais complexa e estes segmentos encontram dificuldades para defenderem-se adequadamente do crime organizado. Aliado a isso, os Clubes de Tiro espalhados pela região podem estar servindo de base para o treinamento de criminosos.
Se já não bastasse a ação dos mercadores do clima e suas propostas de bioeconomia, mercado de carbono e outras mercantilizadoras da vida, as/os guardiãs(ões) das florestas, das águas, enfim, dos bens comuns, ainda têm que lidar com esse novo e tenebroso cenário, mas pouco ou nada se vê sobre tal questão nos debates sobre a COP-30, por exemplo.
A defesa da (Pan)Amazônia, de seus povos e dos modos de vida ancestrais aqui presentes também passa pelo resoluto enfrentamento dos consórcios do crime. Até mesmo porque tais consórcios são funcionais à livre ação destruidora do grande capital, dos conglomerados econômico-financeiros nacionais e transnacionais. Afinal de contas, a história do capitalismo é ela própria a história contínua do cometimento de crimes.

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

A COP-30 subiu no telhado?

A vitória de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos complexificou ainda mais as negociações em torno do combate às mudanças climáticas. Os discursos de Trump demonstram que o caminho a ser seguido por seu governo será de confronto com pesquisadoras(es) e instituições, cujos estudos científicos comprovam a ocorrência e o agravamento do aquecimento global, com organizações da sociedade civil que se mobilizam nos quatro cantos do planeta exigindo mudanças significativas nas formas como produzimos, consumimos e geramos lixo; com os movimentos sociais anticapitalistas, com povos ancestrais e suas lideranças e com a nossa mídia alternativa. Se antes já havia demonstrações de que os críticos das negociações multilaterais voltadas ao atendimento dos interesses das grandes corporações são os verdadeiros inimigos, tal dúvida não existirá mais com Trump e seus aliados. Elon Musk, Bolsonaro e Milei, entre eles.

O problema é que sem os Estados Unidos qualquer negociação em torno do combate às mudanças climáticas estará fadada irremediavelmente ao fracasso, já que aquele país é o maior consumidor de petróleo do planeta, por exemplo. Para piorar o cenário, Trump pretende avançar a exploração de petróleo no Alasca, ampliar o emprego da técnica de fracking* para a extração de petróleo e gás de xisto e retirar os EUA de acordos internacionais, entre outras iniciativas. Some-se a isto, a disseminação/reafirmação do discursos negacionista, a desestruturação das políticas ambientais e dos órgãos de gestão, bem como o recrudescimento das pressões para que o país se apodere de recursos estratégicos ao redor do planeta (petróleo da Venezuela e o lítio da Bolívia, para citar apenas esses dois casos). O que significará a possibilidade de novas intervenções militares, apoio a golpes de Estado e envio de tropas se considerar necessário. O mundo imaginado por Trump é fundado no poder das armas, das revoluções coloridas, do preconceito, do patriarcado, do conservadorismo religioso, da defesa radical dos interesses dos mais ricos, da xenofobia e do racismo. Portanto, um mundo mais instável, autoritário, desigual e violento.

O que será da COP-30 em Belém do Pará sem os Estados Unidos nas mesas de negociações, ou sem comprometer-se realmente com os acordos a serem estabelecidos? Aliás, mesmo sem assumir compromissos significativos com o combate às mudanças climáticas, os Estados Unidos deverão empenhar-se para o aprofundamento das "alternativas de mercado", que é um dos itens que verdadeiramente lhes interessa: mercado de carbono, "soluções" a partir da geoengenharia, financeirização e outras. Por conseguinte, parece um tremendo equívoco apostar a maior parte das fichas nas negociações no interior da COP oficial, tal como defendido e/ou estimulado por determinados segmentos sociais, como as ONGs-empresas.

Soluções duradouras e estruturantes não sairão das COPs. Mesmo assim são arenas políticas que não  podemos simplesmente desprezar. Contudo, sem a pressão das sociedades nacionais e suas redes de lutas internacionais, sem que estas sejam capazes de mobilizarem-se e realmente impor derrotas aos poderosos conglomerados econômicos e aos blocos de poder dos quais eles fazem parte, nosso futuro comum se torna mais e mais incerto. Por isso, esse processo deve contribuir para constituirmos nosso campo contrahegemônico, cuja utopia deve estruturar-se na construção de novas relações sociais e econômicas, das nossas sociedades com a natureza e mesmo com o sagrado, pois o capitalismo é morte. Simples assim. Nesse sentido, a Cúpula dos Povos pode de fato reunir em torno de si muitos dos segmentos comprometidos com mudanças estruturais na sociedade. E há também espaço para a formação de outras articulações do mesmo tipo.

A COP-30 em Belém pode tornar-se um marco histórico da intervenção das nossas sociedades e organizações nesse processo. Mobilizar, ocupar, resistir, pressionar, propor, cobrar, encurralar, constranger e denunciar deveriam ser alguns dos verbos a orientar o conjunto das nossas iniciativas. O problema é que há quem prefira restringir tudo ao verbo negociar, se possível, em salas climatizadas.

A técnica é criticada por ambientalistas, que veem diferentes problemas no processo: contaminação do lençol freático por substâncias químicas, uso intensivo de água, degradação do meio ambiente e riscos para a saúde.

segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Primeiro Round: eles estão vencendo.

Para que governos, corporações econômico-financeiras nacionais e transnacionais, mídia corporativa, empresas de consultoria e de certificação, ONGs-empresas e outros segmentos sociais comprometidos com as alternativas de mercado às mudanças climáticas avancem substancialmente com suas agendas nas negociações multilaterais é necessário alcançar primeiramente um objetivo básico: dividir os movimentos indígenas e de comunidades tradicionais - particularmente o quilombola - de cima abaixo, buscando cooptar suas lideranças, desagregando suas organizações a partir dos territórios e inviabilizando qualquer tentativa de estabelecimento de alianças estratégicas entre eles; tornando-os dependentes ou reforçando diferentes modalidades de dependência. Some-se a isto, a constituição de "parcerias" entre organizações da sociedade civil e de setores da academia com poderosos grupos empresariais, bem como a imposição de condicionantes para o acesso a recursos internos e externos para o desenvolvimento de projetos comunitários/sociais. Ou seja, um conjunto de ações coordenadas que pretendem restringir a capacidade de resistência de quem se coloca contrário(a) ao "ambientalismo neoliberal" e aos interesses dos blocos hegemônicos de poder capitalista.

O outro lado da moeda da desestruturação da capacidade de mobilização e de resistência dos movimentos indígenas e de comunidades tradicionais - e de outras organizações da sociedade civil -  é a despolitização do debate sobre as mudanças climáticas. O objetivo é enclausurar tal debate a questões técnicas e às "alternativas" baseadas em novas tecnologias. Tecnologias estas sob o controle dos blocos hegemônicos de poder capitalista, reforçando assim novas formas de dependência dos países do Sul Global aos do Norte Global. Sem falar que as estratégias de "esverdeamento" dos países do Norte Global passa necessariamente pela intensificação da dependência dos países, da exploração dos recursos e dos povos do Sul.

O problema é que em meio a esse cenário não conseguimos ver iniciativas que caminhem no sentido do estabelecimento do que um dia foi definido por Chico Mendes como Aliança dos Povos da Floresta. Dificuldades organizativas e financeiras, os ataques diuturnamente sofridos por povos indígenas e comunidades tradicionais contra seus membros e territórios, leituras divergentes sobre a natureza e projeto político do governo Lula e da quadra histórica que vivenciamos, além certa falta de vontade política por parte de determinados segmentos, mesclam-se e acabam contribuindo de alguma forma para engaiolar todo o potencial que dispomos de fazer avançar alternativas verdadeiramente estruturantes para resolver o problema das mudanças climáticas.

A foto de Helder Barbalho, governador do Pará, com sua comitiva em Nova Iorque quando do anúncio do acordo com megacorporações capitalistas para a venda de crédito de carbono é representativa da perda que vimos sofrendo nesse round. Vamos continuar perdendo por pontos ou o nocaute se aproxima? Ou vamos nos levantar, nos recompormos e tal como afirmou o grande boxeador Muhammad Ali diremos a nós mesmas(os) que o "impossível não é um fato, impossível é uma opinião".


segunda-feira, 22 de julho de 2024

As nuances entre capitalistas liberais e capitalistas de extrema-direita.

 As eleições nos Estados Unidos ganham novos contornos após a desistência de Joe Biden de concorrer às eleições deste ano. Analistas afirmam que a derrota de Donald Trump é fundamental para a manutenção da democracia e de suas instituições não somente naquele país. Há evidentemente diferenças nada desprezíveis entre os dois; diferenças que talvez se acentuem caso Kamala Harris seja a candidata do Partido Democrata: um feroz anti-imigrante contra uma descendente de indianos, um que recebe o vibrante apoio de membros da Ku Klux Klan e outros segmentos de extrema-direita e uma afrodescendente que conta com a simpatia de liberais e de organizações progressistas. Enfim, há realmente muitas diferenças a lhes distinguir. Contudo, nas questões centrais que dizem respeito à manutenção do poder hegemônico dos EUA essas diferenças se diluem substancialmente. As guerras continuarão a ser travadas, estimuladas, monitoradas e controladas como sempre foram; os segmentos considerados inimigos serão perseguidos, combatidos, mantidos à distância ou eliminados;  os "amigos" continuarão a ser vigiados pelas agências de informações; a poderosa propaganda do "nós contra eles" permanecerá ativa; os recursos naturais do planeta serão buscados a qualquer custo, financiada sua exploração e haverá pressão para que as empresas estadunidenses adquiram o controle dos mesmos; novas "lava-jatos" serão instauradas; as "guerras híbridas" que consistem, entre outras estratégias, em desestabilizar regimes/governos considerados inimigos ou pouco parceiros continuarão a ser apoiadas mundo afora (dinheiro, pessoal e guerra de propaganda), tais como o Movimento Brasil Livre (MBL) e o Vem Pra Rua em nosso país durante o governo Dilma Roussef ou setores neonazistas na Ucrânia; o apoio ao genocídio israelense contra palestinos(as) manter-se-á firme. Essas agendas unem os Partidos Democrata e Republicano. A história estadunidense comprova essa convergência de interesses estratégicos.

No Brasil, diversos capitalistas liberais não tiveram qualquer pudor em apoiar capitalistas de extrema-direita como Jair Bolsonaro nas eleições de 2018; entre eles banqueiros, donos de emissoras de televisão e de rádio e até mesmo um certo e "meigo" apresentador de televisão hoje empenhado em alçar Tarcísio de Freitas, atual governador de São Paulo, o "Bolsonaro paulista", à condição de candidato à Presidência da República. Para isso será necessário envidar esforços a fim de "humanizar a extrema-direita" junto a opinião pública.

Segundo o sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman, sociedades de diferentes épocas sempre produziram seus "estranhos" seja por motivos cognitivos, morais ou estéticos. Os estranhos são aquelas pessoas que de alguma forma não se encaixam no padrão dominante. São os/as que tentam ultrapassar as fronteiras e os limites estabelecidos e que por conta disso causam mal-estar aos/às que impõem a ordem a ser seguida. Olho para o Brasil e minha percepção é que os/as estranhos(as) de Bauman referem-se aos pretos e às pretas que teimam em entrar na universidade, aos povos indígenas e comunidades tradicionais que teimam em manter seus modos de vida e territórios sob controle coletivo, os/as moradores(as) das favelas que não aguentam mais a violência do Estado ou que resolveram "ocupar" as praias dos bacanas, os/as artistas das periferias que passam a frequentar os ambientes dos grã-finos. Mas também pode ser o Vinicius Junior que resolveu peitar os racistas espanhóis.

Jamais esqueçamos isso: há limites, fronteiras que não podem ser ultrapassados. Por conseguinte, o/a capitalista liberal sempre apoiará as lutas feministas ou contra o racismo desde que não coloquem em xeque a ordem estabelecida. Isto é, desde que essas lutas mantenham-se desconectadas de seu caráter de classe. O/A capitalista de extrema-direita, nem isso. O/A capitalista liberal sempre apoiará a realização de eleições regulares, o revezamento no exercício do governo e a liberdade de expressão desde que a esquerda ou os segmentos progressistas não se atrevam a mexer no que lhes é mais sagrado: a propriedade privada. O/A capitalista de extrema-direita quer simplesmente eliminar quem lhes faz oposição. O/A capitalista liberal apoiará as lutas pela conservação das florestas e pelo direito de povos indígenas e comunidades tradicionais aos seus territórios desde que estes não imponham restrições a entrada de novas terras ao mercado, que não impeçam a alocação de projetos de infraestrutura logística que conectem as áreas ricas em recursos naturais ao comércio globalizado, que aceitem ter seus conhecimentos ancestrais apropriados por poderosos conglomerados econômicos nacionais e transnacionais na produção de cosméticos, remédios e outros produtos sem que lhes sejam reconhecidos seus direitos de patente; ou que aceitem participar das alternativas de mercado às mudanças climáticas, por exemplo. O capitalista de extrema-direita quer mais é que as políticas e órgãos ambientais "explodam".

As nuances existem. Todavia, os limites impostos por ambos capitalistas jamais nos farão superar as mazelas criadas e sustentadas pelo sistema, pois o contrário significaria a destruição do mesmo. As agudas contradições que se aprofundam no decorrer do tempo tendem a tornar a violência, em suas diferentes modalidades, o recurso a ser empregado com vigor e sem qualquer hesitação. Apoiar as alternativas autoritárias, por exemplo, nunca deixou de estar no cardápio dos/das liberais. A história do fascismo italiano ou da ditadura civil-militar no Brasil são modelares. E assim continuará por longo período. O problema é que muitos setores do nosso campo acreditam piamente que poderão alcançar mudanças duradouras flertando com o programa dos capitalistas liberais, ou buscando incorporar segmentos extremistas à base de apoio de seus governos sem construir efetivamente um contrapoder, uma contrahegemonia. Muito estranho...

segunda-feira, 10 de junho de 2024

Os/As extremistas estão chegando. Estão chegando os/as extremistas.

 E eis que a extrema-direita saiu fortalecida na eleição ocorrida neste último final de semana ao parlamento europeu, particularmente em países como Alemanha, França e Itália. Os discursos de ódio, antimigração e contra as instituições democráticas ganharão mais espaço ainda nas agendas político-ideológicas. Evidentemente, tais resultados tendem a repercutir para além das fronteiras europeias. Caso Trump não seja impedido legalmente de concorrer às eleições estadunidenses e as vença, o quadro favorável ao extremismo se acentua ainda mais. Uma das questões que se coloca no momento é: esses resultados eleitorais são somente uma "nova" onda conservadora, ou na realidade se trata de uma tendência em escala global?

No Brasil, creio eu, não compreendemos nos devidos termos todo o significado do que foi o governo Jair Bolsonaro. Com este, os grupos sociais extremistas ganharam voz e visibilidade. O que temos hoje são movimentos sociais com grande capacidade de mobilização, capazes de interferir e pautar a agenda política nacional e que vêm crescendo em todos os cantos do país, mesmo que não uniformemente. Um projeto que articula poderes econômico e político (controle de territórios e dos recursos neles disponíveis, destruição de garantias constitucionais, fragilização das legislações socioambientais, expansão do agronegócio, padronização socioprodutiva e das paisagens etc.), fé e religião (defesa da submissão a autoridade dos/das pastores(as) e projeto de poder fundado na teologia do domínio), comunicação de massa, contínuo avanço sobre o aparelho de Estado (representação parlamentar e controle sobre órgãos de segurança pública, por exemplo), a relativização da verdade (a verdade virou mera opinião distribuída fartamente pelas redes sociais confrontando, inclusive, aquelas demonstradas cientificamente, vide o caso dos segmentos antivacina, e onde a mentira é tão somente a ponta do iceberg desse processo mais profundo); adoção de medidas para avançar o controle dos homens sobre o corpo, a mente e o trabalho da mulher, tornando-as políticas governamentais; racismo, xenofobia e homofobia.

Chega a ser risível as análises de que não podemos contribuir para o acirramento das disputas político-ideológicas no país. A extrema-direita e seus aliados fazem isto diuturnamente, pois tomaram para si a iniciativa de enfrentar e derrotar a esquerda e os setores progressistas do país. Num cenário como esse há quem pense no nosso campo que o zero a zero é um ótimo resultado. Afinal, de acordo com esse "ponto de vista", o gol é um mero detalhe.

quinta-feira, 6 de junho de 2024

Um Barbalho, dois Barbalhos, três Barbalhos...

Circula pelos meios políticos a informação de que Helder Barbalho (PMDB) possui 82% de aprovação somente na capital paraense. Mesmo que o índice não chegue a tanto é notório a ampla base de apoio político e popular alcançado por ele não somente aqui, mas em todo o estado. Tal situação é fruto de um conjunto de fatores, tais como execução de diversas e vistosas obras públicas, eficiente e profissional estratégia de marketing/propaganda, a incorporação à estrutura de governo de caciques das mesorregiões Oeste e Sul/Sudeste do Pará na tentativa de controlar os descontentamentos das elites locais e com isso arrefecer o ímpeto separatista das mesmas, além da construção de amplo leque de alianças políticas que agregam desde segmentos neopentecostais bolsonaristas até parcela de setores progressistas, como o Partido dos Trabalhadores (PT). É também digno de nota o choque de imagem que Helder promoveu ao longo dos últimos anos, desde que foi prefeito do município de Ananindeua, integrante da Região Metropolitana de Belém, revertendo em grande medida a antipatia e ojeriza que parte significativa da população paraense nutria contra as famílias Barbalho e Zaluth, esta última a vertente da mãe do governador.


A habilidade demonstrada para articular apoios partidários, bem como parcerias com organizações da sociedade civil não encontra paralelo em outros governos. Ao menos desde a retomada das eleições para governador em 1982. Talvez a referência mais próxima seja justamente com o primeiro governo do pai dele e atual senador, Jader Barbalho. O clamor popular pelo fim da ditadura e a possibilidade concreta de infligir derrota eleitoral contra os militares e sua base civil/empresarial fez com que diversos setores da esquerda à época se somassem à campanha e depois ao governo de Jader. Foram os casos, por exemplo, de parcela do então Partido Revolucionário Comunista (PRC) - parte abrigada no MDB e outra no PT -, MR-8, PCB e PC do B. De lá para cá nenhum outro mandatário havia conseguido tal feito. Helder, sim. Seu governo é uma colcha de retalhos de siglas partidárias. O que lhe garante céu de brigadeiro não somente no parlamento. O Tribunal de Contas do Estado (TCE) que o diga.

O "novo" modelito barbalhiano inclui também a recauchutagem no discurso político-ideológico. Profundamente comprometido com as alternativas de mercado às crises climática e ambiental, Helder abraçou a economia verde como elemento estruturante da sua estratégia, inclusive para alçar voos mais longos. Com isso, cacifou-se diante de diferentes setores da comunidade internacional - ONGs, governos e grupos empresariais -, trouxe para sua base segmentos dos movimentos sociais e tornou-se o principal interlocutor do governo Lula na Amazônia. Com Helder Barbalho a bioeconomia passou a ser um mantra, que a tudo justifica e promove.


Entretanto, o lado B helderiano comporta sólidos compromissos com o agronegócio (soja e dendê, em especial), mineração, madeireiros, empresas dos setores logístico e de cosméticos e, como não podia deixar de ser, com consultores, certificadores e investidores do mercado financeiro vinculados à economia verde. Por trás disso tudo, a implementação de diferentes iniciativas para garantir acesso aos territórios de povos indígenas e de comunidades tradicionais, além de áreas de conservação ambiental, à exploração empresarial nacional e transnacional. O mercado de carbono, com estímulo à assinatura de contratos de crédito de carbono por parte das comunidades, e a Lei de Terras, esta aprovada pela Assembleia Legislativa do Pará, servem de exemplo.

Enquanto isso, os crimes socioambientais continuam a solta no estado. É o que ocorre no município de Barcarena, cujo Distrito industrial até hoje não possui sequer licença ambiental. Também podemos incluir as ações das mineradoras Hidro e Imerys em territórios quilombolas (no município de Moju, por exemplo) e do povo Tembé (Tomé-Açu); o apoio irrestrito à construção da Ferrogrão - que promoverá destruição em larga escala nos territórios do povo Munduruku (Oeste do Pará), a instalação de portos que atingirão diversas comunidades ribeirinhas - Maicá, em Santarém, e no Baixo Tocantins.


Outro passo importante na recauchutagem da imagem familiar foi o estabelecimento do "acordo de paz" com os Maiorana, representantes locais das organizações Globo. Evidentemente, tal acordo passou pela retomada da veiculação de propaganda oficial nos veículos de comunicação de propriedade daquela família, entre outras medidas. O fato é que os "radicais" da família perderam poder interno e Helder passou a contar com a "simpatia" do grupo empresarial.


A tendência predominante é que Helder Barbalho eleja a maior parte dos(as) prefeitos(as) e dos(as) vereadores(as) paraenses em outubro próximo, com a direita/extrema-direita dentro e fora desse arco de alianças conquistando fatia importante dos governos locais. Já os setores progressistas e de esquerda devem manter-se como coadjuvantes nesse processo. Nada indica o contrário até este momento.


A perda das eleições em Belém por parte da esquerda é uma possibilidade real. Eder Mauro, o pré-candidato de extrema-direita, tem chances de obter uma votação relevante. Contudo, quando Helder colocar as máquinas governamental e partidária para funcionar as chances do delegado miliciano devem reduzir-se consideravelmente. Talvez, para Eder Mauro, as próximas eleições sejam apenas um teste em vista do seu objetivo principal: eleger-se senador em 2026.

Uma das formas de enfrentar esse processo avassalador passaria pelo estabelecimento de alianças estratégicas dos movimentos sociais em torno de candidaturas de esquerda nos diferentes municípios. Creio ser um  erro deixar tarefa tão importante nas mãos exclusivas das direções partidárias e às suas lógicas internas de disputas, porque precisamos de pessoas comprometidas com as lutas populares e suas pautas. Para nós, pouco adianta que sejam eleitas figuras que, mesmo sendo de partidos de esquerda ou do campo progressista, estejam mais próximas de uma agenda liberal - a consolidação do mercado de carbono, por exemplo. É importante que as eleições sejam mais um passo na construção de um campo contrahegemônico. É disso que precisamos.

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

É logo ali.

Estamos vivenciando um momento bastante delicado. Isto porque ele se materializa enquanto um ponto de bifurcação histórico, daqueles em que as incertezas dominam o cenário. Há tantas possibilidades em aberto que fica difícil apreender adequadamente as consequências das decisões que estão sendo tomadas agora. Há aqui uma primeira questão a ser abordada: a política vem sendo diuturnamente atacada de diferentes formas justamente quando ela é mais necessária diante dos enormes desafios que se apresentam. A política aqui entendida como uma das ações humanas da mais alta relevância.

despolitização da política levada a cabo diuturnamente ao redor do planeta agrega, por motivos diversos, (i) a extrema direita e sua tentativa de impor regimes autoritários fundados no medo, na violência, no ódio, no individualismo exacerbado acoplado à destruição da perspectiva da universalização de direitos, bem como no completo repúdio à democracia e suas instituições, turbinadas pelo manuseio dos algoritmos e da inteligência artificial para atingir tal finalidade; (ii) os conglomerados midiáticos e segmentos encastelados nos aparelhos de Estado no uso do lawfare[1], da mentira e da manipulação como estratégia de destruição de adversários; (iii) setores religiosos conservadores que em nome de um suposto deus justificam a guerra, o armamentismo, os ataques a grupos minoritários, a violência contra mulheres, negros(as) e integrantes de distintas periferias (sejam moradoras de bairros populares, população de rua e/ou de países e regiões marginais do capitalismo), bem como demonizam as esquerdas e seus programas partidários; (iv) atores sociais diversos, inclusive do "nosso campo", comprometidos com a implementação de soluções de mercado às múltiplas crises porque passam nossas sociedades, que abrange desde a ideologia do empreendedorismo em substituição paulatina à noção de cidadania até às "alternativas" para as crises climática/ambiental, como o mercado de carbono. Em variados momentos do debate sobre as mudanças climáticas, por exemplo, a crença de que a tecnologia - eficiente e neutra - evitará o pior se apresenta concorrendo com as soluções pela política.

As bifurcações que se apresentam são fundamentalmente de três ordens. A primeira diz respeito justamente às crises climática e ambiental. As mudanças no clima demonstram de maneira muitas vezes trágicas que o capitalismo, este um dos resultados históricos das ações/decisões humanas, nos colocou diante da possibilidade concreta de desaparecermos enquanto espécie da face da Terra. Nossa desgraça está no fato de que o sistema capitalista não demonstra qualquer capacidade de efetivar mudanças estruturais que revertam tal situação. Pelo contrário, o que "os donos do mundo" buscam a todo custo é encontrar formas de lucrar com essas crises. Os acordos que estão sendo costurados seguem de alguma forma por esse caminho. Nossa perspectiva conflita com tal trilha e nos leva a parodiar uma frase que ficou famosa e dizermos que o problema não é a molécula de carbono e sim o sistema, idiota! Não consigo ver saídas duradouras nos marcos do sistema. A segunda, é a possibilidade de uma hecatombe (massacre de um grande número de pessoas, mortandade, carnificina) nuclear. Nunca é demais lembrar que a guerra sempre foi usual para a recomposição/redefinição dos instrumentos e das formas de exercício de poder. Mais uma vez nossa espécie estaria em risco de desaparecimento, assim como ocorreu com outras espécies ao longo da história do nosso planeta. A terceira está relacionada ao rearranjo geopolítico mundial. Guerras na Ucrânia e na Palestina, disputa feroz por recursos energéticos, BRICS, aliança estratégica entre China e Rússia, desdolarização das economias, Rota da Seda, crise da OTAN, ascensão da extrema direita, crise da democracia liberal e de suas instituições e outros eventos provocam abalos nas estruturas que antes se mostravam sólidas. Essa miscelânea de processos imbricados uns nos outros também tem potencial para provocar conflitos de grande magnitude.
A tendência que se apresenta com forte possibilidade é o da generalização das crises e de confrontos em larga escala. Porém, tendência significa a disposição por um determinado caminho. Não é algo taxativo. Aí é que entra a política. As decisões que tomarmos agora é que vão confirmar ou não essa tendência. Se depender dos "senhores da guerra" é a trilha predominante. A questão é: nós os/as anticapitalistas, antipatriarcais e antirracistas acumularemos força suficiente para impormos alterações de rotas que efetivem outras tendências?


[1] Lawfare é uma palavra-valise introduzida nos anos 1970 e que originalmente se refere a uma forma de guerra na qual o direito é usado como arma. Basicamente, seria o emprego de manobras jurídico-legais como substituto de força armada, visando alcançar determinados objetivos políticos. Vide o caso da Lava-Jato no Brasil ou das ações judiciais que poderosos grupos empresariais empregam para criminalizar movimentos sociais e/ou suas lideranças.