quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

A democracia virou um problema. Que tal destruí-la?

Numa troca de mensagens recentemente realizada com o meu amigo Sérgio Martins chegamos a um ponto comum: a democracia se tornou um estorvo ao grande capital. Evidentemente, muitas outras pessoas pensam da mesma forma. O juiz Rubem Casara, por exemplo, em seu livro Estado pós-Democrático: neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis, levanta uma questão da mais alta relevância: vivemos realmente num Estado Democrático de Direito? Segundo Casara, a racionalidade neoliberal colonizou o Estado e isto tem consequências brutais sobre quem sofre arbitrariedades de todos os tipos. Observem o que ele diz numa entrevista concedida a Sergio Rodas, da publicação Consultor Jurídico*:
A racionalidade neoliberal é esse modo de ver e atuar no mundo que faz com que tudo e todos sejam tratados como objetos negociáveis. Essa racionalidade colonizou o Estado, as instituições, as pessoas e inclusive o Direito, fazendo, por exemplo, com que as garantias fundamentais passassem a ser percebidas como obstáculos à eficiência do Estado ou do mercado. Em linhas gerais, pode-se dizer que a racionalidade neoliberal se caracteriza tanto por transformar o mercado em modelo de todos os relacionamentos como por seguir a lógica da concorrência e o ideal de ilimitação, instaurando-se uma espécie de "vale tudo" por dinheiro e sucesso.
Indagado se o Estado Pós-Democrático é uma tendência mundial, Casara respondeu:
É uma consequência necessária daquilo que vários teóricos chamam de racionalidade neoliberal. Isso se dá em todo o mundo. Por evidente, em países lançados em uma tradição autoritária, em democracias de baixa intensidade, a pós-democracia se instala de maneira quase imperceptível. Um país como o Brasil, no qual parcela considerável da população prefere apostar no uso da força em detrimento do conhecimento, marcado tanto pela naturalização da desigualdade e da hierarquização entre as pessoas quanto pelo medo da liberdade, a pós-democracia se instalou sem enfrentar resistência.
O fato é que o chamado jogo democrático marcado por eleições regulares (supostamente livres), revezamento no comando do Estado, implementação de políticas inclusivas, respeito às garantias individuais e coletivas, típicas do liberalismo, mesmo quando não colocadas verdadeiramente em prática, são consideradas cada vez mais como obstáculos à livre expansão do grande capital; melhor dizendo, ao livre controle de territórios e dos recursos neles disponíveis, das riquezas produzidas socialmente, da renda, do poder, das pessoas, da comunicação, dos pensamentos, dos comportamentos, dos afetos, dos imaginários... Enfim, uma sociedade onde a única regra seja aquela imposta pelo mercado desregulamentado. Nesta, a pulsão da morte é a diretriz que comanda as ações dos "donos do poder", dos blocos hegemônicos, pois nela já não há sentido para a existência de grande parte da humanidade, de modos de vida diferenciados, de diversidade de gênero, das variadas formas de professar a fé; vertente onde o racismo, o patriarcado, a xenofobia e a homofobia são negados. Alias, tal negação alcança a própria história e a ciência.

A volta do que nunca foi.

Neste cenário, mesmo governos cuja "utopia" seja a conciliação entre capital e trabalho, uma espécie de "capitalismo democrático", não servem. Contra eles também se estabelecem estratégias para constrangê-los, adequá-los, enfraquecê-los ou derrubá-los. As hordas alimentadas cotidianamente pelo ódio são o braço armado das novas bestas do Apocalipse. Elon Musk e Mark Zuckerberg estão aí para provar como funciona. Tudo em perfeita sintonia com os "falcões de Washington".

Certa vez o pensador Immanuel Wallerstein afirmou que a pior coisa para o próprio capitalismo é o mercado desregulamentado, pois o princípio de "todos contra todos" sem qualquer regramento tenderia a levar o sistema ao colapso. Sem o Estado, portanto, como o instrumento a garantir a defesa do sistema dele mesmo, não haveria futuro ao capitalismo. O Estado está fraco? A questão é: para quem? Se o Estado de nada valesse por qual motivo Musk assumiu funções precisas dentro do governo Trump? Ele não está lá somente por status. Da mesma forma que Milei (Argentina) também não está ou que Bolsonaro não esteve. Há um projeto político-ideológico articulado internacionalmente de aniquilamento de direitos, da apropriação em larga escala de recursos públicos pelo rentismo, de execução de uma economia de destruição onde a reprodução do modelo está fundado na violência e na destruição da natureza.

Fico aqui pensando cá com os meus botões: o que estarão pensando os mercadores do clima sobre tudo isso? Fico só pensando...

https://www.conjur.com.br/2019-jun-02/entrevista-rubens-casara-juiz-criminal-rio-professor/

quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

Interessa fazer alianças?

A dinâmica das lutas sociais mudou completamente com a expansão da globalização capitalista neoliberal. Os obstáculos levantados por esse processo dificultam a resolução de problemas no âmbito exclusivamente locais. Mesmo questões básicas às áreas urbanas e rurais como a coleta e tratamento do lixo, por exemplo, não encontram soluções apenas nos estritos limites municipais. Ainda mais se tratando da Amazônia onde a maioria absoluta das municipalidades são completamente dependentes dos repasses de recursos estaduais e federais. Esse quadro fica ainda mais complicado no que diz respeito ao domínio de vastas extensões territoriais amazônicas pelo narcotráfico. Isto não significa de modo algum que as lutas locais perderam significado. É nos territórios que a vida encontra significados (no plural) e é a partir deles que a engrenagem das mudanças se movimenta. Todavia, boa parte das soluções somente serão alcançadas com a articulação em rede dessas mobilizações territoriais com as demais escalas - do local ao internacional.

Nossa realidade não pode ser pensada como um bolo que é feito de diversas camadas, uma sobre a outra. Não! O internacional está no local,  o local no nacional, o nacional no regional e assim por diante. Se um dia já nos foi dito que a luta da classe trabalhadora é internacional, hoje, os atores sociais contestadores do sistema são múltiplos e precisam atuar nessas diferentes escalas, ao mesmo tempo. O fato é que qualquer organização que não esteja preparada para essa nova situação tende a sucumbir. Esta dinâmica serve para as lutas por saúde, educação, regularização fundiária, coleta e tratamento de esgoto, defesa da democracia, enfrentamento às crises climática e ambiental e outras mais.

A vida passa por aqui.


A realização da COP-30 na Amazônia contribuiu de certa forma com processos já em andamento de construção de convergências entre organizações das sociedades civis do Brasil e de outros países que almejam estabelecer objetivos e programas comuns de ação, compartilhamento de expertises e recursos. É o caso, por exemplo, de iniciativas como a Cúpula dos Povos, o Movimento pela Terra e Pelo Clima, a COP das Baixadas, a COP do Povo, o Fórum Social Pan-Amazônico (FOSPA) e a Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM).

São muitas as iniciativas agregando a diversidade de atores sociais da região e de fora dela em torno de redes (multi)temáticas: agroecologia, ambientalismo, reforma urbana, luta contra o patriarcado, defesa dos direitos socioterritoriais de povos indígenas e comunidades tradicionais, monitoramento do setor financeiro e de grupos empresariais, fortalecimento da democracia e de suas instituições, entre outros. Todavia, profundas divergências vieram à tona tendo como centralidade o debate acerca das alternativas às crises climática e ambiental e ao modelo hegemônico de desenvolvimento. A relação da exploração do petróleo com a transição energética é um exemplo de problemática que muitas vezes coloca em posições opostas integrantes do campo progressista/contrahegemônico.

Por outro lado, os blocos hegemônicos de poder interessados em fazer expandir o controle do grande capital sobre os territórios e seus recursos têm colocado em prática uma das máximas da estratégia de poder/militar: dividir para governar. Nesse sentido, estabelecem parcerias com organizações da sociedade civil e desembolsam vultosos recursos às mesmas, realizam pressões de todo tipo, ameaçam, destroem políticas públicas inclusivas, cooptam organizações de base e suas lideranças e contam, inclusive, com a efetiva participação de parcelas dos movimentos sociais e de ONGs, além de integrantes de instituições de ensino e pesquisa. O “marketing verde” na mídia corporativa é outra dessas ações, utilizando fartamente a imagem de figuras públicas que contam com a simpatia de população. Isso tudo tem contribuído ao recrudescimento de divisões no interior do campo progressista.

O momento atual apresenta condições adequadas para o estabelecimento de fortes e duradouras alianças em defesa da Amazônia e da vida no planeta. Mais do que nunca a constituição de uma Aliança dos Povos da Floresta é necessária. Chico Mendes continua vivo, atual. Uma poderosa rede desse tipo teria condições de atuar nas diferentes escalas, promover massivas mobilizações sociais e efetivamente atravancar o projeto destruidor capitalista neoliberal na perspectiva de outros modelos alternativos. Então, por que as grandes organizações da Amazônia brasileira não avançam nesse sentido? Quais obstáculos impedem o estabelecimento de alianças estratégicas? As possíveis divergências existentes impedem o alcance desse objetivo? É possível a mediação desse processo? Alguém se disporia a dar o primeiro passo?

Chico Mendes: mais atual do que nunca.

Em tese, ganhos de curto e médio prazos obtidos a partir de pressões, negociações e parcerias com o governo federal e/ou outras instituições não impedem a busca por alianças estratégicas em torno de um projeto contrahegemônico, de longo prazo. A questão é complexa e ao mesmo tempo simples: o capitalismo nos levará à morte, porque a morte é a mola que alavanca o sistema. A morte em vida, inclusive, de pessoas e/ou organizações.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

Aquaman 2 e o engodo sobre as crises climática e ambiental.

Engodo pode ser compreendido como um "artifício com que se tenta atrair, aliciar ou induzir alguém; ardil, manobra, tapeação". Ou seja, engodo tem o mesmo significado de cilada. Mas o que isso tem a ver com o filme Aquaman 2: O Reino Perdido, lançado em 2023? Vamos começar com um resumo do filme. Aquaman vive tranquilo cuidando do seu filho e, ao mesmo, tempo, governa o reino de Atlântida. Tarefa, aliás, que ele acha enfadonha, um saco. Lá pelas tantas Arraia Negra, um de seus inimigos e interpretado por um ator negro, põe em prática um plano para libertar uma força maligna presa há séculos por conta de um feitiço. Essa força do mal está congelada. Qual então é o plano do Arraia Negra? Acelerar o aquecimento global que já vinha acontecendo, utilizando um tipo de combustível altamente poluente escondido no fundo do oceano. O derretimento das calotas polares era necessário para se chegar ao vilão aprisionado e libertá-lo.

É preciso dizer que a tal força maligna orienta Arraia Negra para que se aproprie de armamentos e veículos criados a partir de tecnologias antigas, assim como de um tridente que lhe dá grande poder. Por conta disso, Aquaman tem que superar suas divergências com o irmão e fazer com este uma aliança que garanta a sobrevivência de Atlântida e do próprio planeta, além de impedir o retorno do coisa ruim.


O filme desenrola-se com muita luta, uso de armas e de animais marinhos nos conflitos. Um típico filme de ação. Porém, o detalhe mais importante está no final. Depois de derrotar o Arraia negra, que prefere morrer do que entregar-se, Aquaman convence os povos dos oceanos - sim, são vários povos - a iniciar contato com o povo da superfície para estabelecer alianças em nome da vida e da preservação do planeta. Por conta disso, Aquaman assume o posto de embaixador de tais povos junto a uma espécie de ONU. No discurso em que se apresenta, Aquaman fala da importância da cooperação mútua, particularmente na área tecnológica, para salvar as diferentes espécies. E aqui está o ponto central do que queremos abordar.

Todas e todos sabemos do poder das mensagens subliminares presentes nas produções cinematográficas de Hollywood. Nelas, os Estados Unidos sempre aparecem como povo e governos amantes da liberdade, os que defendem o mundo das denominadas por eles como forças do mal e/ou totalitárias; os que são comprometidos com a vida, a democracia e suas instituições. Não à toa a bandeira estadunidense aparece ao final de muitos filmes, como os do Homem-Aranha ou Super-Homem.

No filme do Aquaman o capitalismo não existe. Não é a força destruidora deste que está levando o planeta cada vez mais perto do precipício. Não é a sanha deste por lucro que está promovendo a destruição de ecossistemas e colocando em risco grandes parcelas da população mundial. Por outro lado, de acordo com o filme, a saída ao caos que nos encontramos está na tecnologia e não na política. Mas quem controla essas tecnologias oferecidas como "alternativas"? Quem controla os capitais que as cria, patenteia e vende?

O filme Aquaman 2: O Reino Perdido é um verdadeiro canto da sereia, uma exaltação à despolitização do debate sobre as crises climática e ambiental. Suas mensagens subliminares promovem a acomodação e a crença de que os que detêm a tecnologia "irão nos salvar". Estamos diante de um discurso e um conjunto de práticas que somente interessa aos mercadores do clima, às corporações transnacionais que pretendem ganhar mais dinheiro às custas da destruição da Terra, a poderosos Estados nacionais, às empresas de consultoria e consultores(as), às ONGs-empresas, à mídia corporativa, às religiões-empresas etc... Enquanto isso, o capitalismo é o verdadeiro "Reino Perdido" que precisa ser encoberto para que seus crimes permaneçam impunes. Um espelho da COP-30?

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Não estamos preparadas(os).

No último dia 05 deste mês as Polícias Militar e Civil do Pará apreenderam um carregamento de armas pesadas no município de Abaetetuba, este localizado na mesorregião Nordeste Paraense, a cerca de 123 km da capital, vindas provavelmente do Suriname para abastecer grupos criminosos que atuam no estado. Foi a maior apreensão de fuzis realizadas em solo paraense: 16 fuzis, sendo 13 calibre 556 e 3 calibre 762. Em agosto, a Polícia Rodoviária Federal apreendeu 75 kg de cocaína que seguiam rumo a São Luís, no Maranhão. Em outubro foram 50 kg de cocaína apreendidas em Abaetetuba. Por sua vez, em abril deste ano a Polícia Federal realizou ações em sete estados brasileiros contra grupos criminosos especializados no envio de cocaína para a África e Europa, utilizando-se de barcos pesqueiros para tal empreitada. No Pará, a ação desenrolou-se em seis municípios: Vigia, Curuçá, Abaetetuba, Ananindeua, Belém e Altamira. Com exceção da capital, os demais são pequenos e médios municípios.

Apreensão de armamentos em Abaetetuba (PA)

O fato é que os grupos criminosos com fortes vinculações internacionais estão não somente disputando os grandes centros urbanos amazônicos, como Belém e Manaus, mas também pequenos e médios municípios estrategicamente localizados ao longo do rio Amazonas e seus afluentes. O Pará e o Amapá são importantes nessa disputa entre os cartéis por suas proximidades com o Oceano Atlântico. Pequenos municípios até então pacatos agora são atravessados por conflitos entre gangues. Eles controlam vicinais e ramais, a circulação de pessoas e carros nas comunidades e entre as comunidades, impõem toque de recolher e a lei do silêncio, interferem nas eleições. Além disso, ameaçam lideranças comunitárias e suas organizações.
Amazônia: grande rota do tráfico
internacional de drogas.
Povos indígenas e comunidades tradicionais enfrentam as pressões de narcotraficantes de uma forma nunca antes vista. Isto porque tais grupos apresentam-se cada vez mais organizados e articulados, desde os territórios até o plano internacional. Hoje, há muitos casos de jovens indígenas, quilombolas e outros envolvidos(as) com o crime organizado e mesmo sendo assassinados(as) por conta de dívidas com o tráfico. Quando tais grupos instalam-se numa comunidade e/ou território os modos de vida alteram-se radicalmente. O medo se impõe. Até mesmo as lutas de resistência em defesa dos territórios coletivos/comunitários sofrem baixa significativa. A divisão nas bases é estimulada e acentuada.
Um dos grande legados do governo Bolsonaro foi ter contribuído para alçar o crime organizado existente na região a um outro patamar. Agora, presenciamos verdadeiros consórcios do crime juntando narcotraficantes, contrabandistas, milicianos, grileiros, garimpeiros ilegais, desmatadores e outros. Financiamentos cruzados fortalecem as redes criminosas, implementam/utilizam logísticas e rotas comuns, constituem redes de proteção com diferentes segmentos do aparato estatal.
Ou seja, a defesa dos direitos socioterritoriais de povos indígenas e de comunidades tradicionais tornou-se ainda mais complexa e estes segmentos encontram dificuldades para defenderem-se adequadamente do crime organizado. Aliado a isso, os Clubes de Tiro espalhados pela região podem estar servindo de base para o treinamento de criminosos.
Se já não bastasse a ação dos mercadores do clima e suas propostas de bioeconomia, mercado de carbono e outras mercantilizadoras da vida, as/os guardiãs(ões) das florestas, das águas, enfim, dos bens comuns, ainda têm que lidar com esse novo e tenebroso cenário, mas pouco ou nada se vê sobre tal questão nos debates sobre a COP-30, por exemplo.
A defesa da (Pan)Amazônia, de seus povos e dos modos de vida ancestrais aqui presentes também passa pelo resoluto enfrentamento dos consórcios do crime. Até mesmo porque tais consórcios são funcionais à livre ação destruidora do grande capital, dos conglomerados econômico-financeiros nacionais e transnacionais. Afinal de contas, a história do capitalismo é ela própria a história contínua do cometimento de crimes.

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

A COP-30 subiu no telhado?

A vitória de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos complexificou ainda mais as negociações em torno do combate às mudanças climáticas. Os discursos de Trump demonstram que o caminho a ser seguido por seu governo será de confronto com pesquisadoras(es) e instituições, cujos estudos científicos comprovam a ocorrência e o agravamento do aquecimento global, com organizações da sociedade civil que se mobilizam nos quatro cantos do planeta exigindo mudanças significativas nas formas como produzimos, consumimos e geramos lixo; com os movimentos sociais anticapitalistas, com povos ancestrais e suas lideranças e com a nossa mídia alternativa. Se antes já havia demonstrações de que os críticos das negociações multilaterais voltadas ao atendimento dos interesses das grandes corporações são os verdadeiros inimigos, tal dúvida não existirá mais com Trump e seus aliados. Elon Musk, Bolsonaro e Milei, entre eles.

O problema é que sem os Estados Unidos qualquer negociação em torno do combate às mudanças climáticas estará fadada irremediavelmente ao fracasso, já que aquele país é o maior consumidor de petróleo do planeta, por exemplo. Para piorar o cenário, Trump pretende avançar a exploração de petróleo no Alasca, ampliar o emprego da técnica de fracking* para a extração de petróleo e gás de xisto e retirar os EUA de acordos internacionais, entre outras iniciativas. Some-se a isto, a disseminação/reafirmação do discursos negacionista, a desestruturação das políticas ambientais e dos órgãos de gestão, bem como o recrudescimento das pressões para que o país se apodere de recursos estratégicos ao redor do planeta (petróleo da Venezuela e o lítio da Bolívia, para citar apenas esses dois casos). O que significará a possibilidade de novas intervenções militares, apoio a golpes de Estado e envio de tropas se considerar necessário. O mundo imaginado por Trump é fundado no poder das armas, das revoluções coloridas, do preconceito, do patriarcado, do conservadorismo religioso, da defesa radical dos interesses dos mais ricos, da xenofobia e do racismo. Portanto, um mundo mais instável, autoritário, desigual e violento.

O que será da COP-30 em Belém do Pará sem os Estados Unidos nas mesas de negociações, ou sem comprometer-se realmente com os acordos a serem estabelecidos? Aliás, mesmo sem assumir compromissos significativos com o combate às mudanças climáticas, os Estados Unidos deverão empenhar-se para o aprofundamento das "alternativas de mercado", que é um dos itens que verdadeiramente lhes interessa: mercado de carbono, "soluções" a partir da geoengenharia, financeirização e outras. Por conseguinte, parece um tremendo equívoco apostar a maior parte das fichas nas negociações no interior da COP oficial, tal como defendido e/ou estimulado por determinados segmentos sociais, como as ONGs-empresas.

Soluções duradouras e estruturantes não sairão das COPs. Mesmo assim são arenas políticas que não  podemos simplesmente desprezar. Contudo, sem a pressão das sociedades nacionais e suas redes de lutas internacionais, sem que estas sejam capazes de mobilizarem-se e realmente impor derrotas aos poderosos conglomerados econômicos e aos blocos de poder dos quais eles fazem parte, nosso futuro comum se torna mais e mais incerto. Por isso, esse processo deve contribuir para constituirmos nosso campo contrahegemônico, cuja utopia deve estruturar-se na construção de novas relações sociais e econômicas, das nossas sociedades com a natureza e mesmo com o sagrado, pois o capitalismo é morte. Simples assim. Nesse sentido, a Cúpula dos Povos pode de fato reunir em torno de si muitos dos segmentos comprometidos com mudanças estruturais na sociedade. E há também espaço para a formação de outras articulações do mesmo tipo.

A COP-30 em Belém pode tornar-se um marco histórico da intervenção das nossas sociedades e organizações nesse processo. Mobilizar, ocupar, resistir, pressionar, propor, cobrar, encurralar, constranger e denunciar deveriam ser alguns dos verbos a orientar o conjunto das nossas iniciativas. O problema é que há quem prefira restringir tudo ao verbo negociar, se possível, em salas climatizadas.

A técnica é criticada por ambientalistas, que veem diferentes problemas no processo: contaminação do lençol freático por substâncias químicas, uso intensivo de água, degradação do meio ambiente e riscos para a saúde.

segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Primeiro Round: eles estão vencendo.

Para que governos, corporações econômico-financeiras nacionais e transnacionais, mídia corporativa, empresas de consultoria e de certificação, ONGs-empresas e outros segmentos sociais comprometidos com as alternativas de mercado às mudanças climáticas avancem substancialmente com suas agendas nas negociações multilaterais é necessário alcançar primeiramente um objetivo básico: dividir os movimentos indígenas e de comunidades tradicionais - particularmente o quilombola - de cima abaixo, buscando cooptar suas lideranças, desagregando suas organizações a partir dos territórios e inviabilizando qualquer tentativa de estabelecimento de alianças estratégicas entre eles; tornando-os dependentes ou reforçando diferentes modalidades de dependência. Some-se a isto, a constituição de "parcerias" entre organizações da sociedade civil e de setores da academia com poderosos grupos empresariais, bem como a imposição de condicionantes para o acesso a recursos internos e externos para o desenvolvimento de projetos comunitários/sociais. Ou seja, um conjunto de ações coordenadas que pretendem restringir a capacidade de resistência de quem se coloca contrário(a) ao "ambientalismo neoliberal" e aos interesses dos blocos hegemônicos de poder capitalista.

O outro lado da moeda da desestruturação da capacidade de mobilização e de resistência dos movimentos indígenas e de comunidades tradicionais - e de outras organizações da sociedade civil -  é a despolitização do debate sobre as mudanças climáticas. O objetivo é enclausurar tal debate a questões técnicas e às "alternativas" baseadas em novas tecnologias. Tecnologias estas sob o controle dos blocos hegemônicos de poder capitalista, reforçando assim novas formas de dependência dos países do Sul Global aos do Norte Global. Sem falar que as estratégias de "esverdeamento" dos países do Norte Global passa necessariamente pela intensificação da dependência dos países, da exploração dos recursos e dos povos do Sul.

O problema é que em meio a esse cenário não conseguimos ver iniciativas que caminhem no sentido do estabelecimento do que um dia foi definido por Chico Mendes como Aliança dos Povos da Floresta. Dificuldades organizativas e financeiras, os ataques diuturnamente sofridos por povos indígenas e comunidades tradicionais contra seus membros e territórios, leituras divergentes sobre a natureza e projeto político do governo Lula e da quadra histórica que vivenciamos, além certa falta de vontade política por parte de determinados segmentos, mesclam-se e acabam contribuindo de alguma forma para engaiolar todo o potencial que dispomos de fazer avançar alternativas verdadeiramente estruturantes para resolver o problema das mudanças climáticas.

A foto de Helder Barbalho, governador do Pará, com sua comitiva em Nova Iorque quando do anúncio do acordo com megacorporações capitalistas para a venda de crédito de carbono é representativa da perda que vimos sofrendo nesse round. Vamos continuar perdendo por pontos ou o nocaute se aproxima? Ou vamos nos levantar, nos recompormos e tal como afirmou o grande boxeador Muhammad Ali diremos a nós mesmas(os) que o "impossível não é um fato, impossível é uma opinião".


segunda-feira, 22 de julho de 2024

As nuances entre capitalistas liberais e capitalistas de extrema-direita.

 As eleições nos Estados Unidos ganham novos contornos após a desistência de Joe Biden de concorrer às eleições deste ano. Analistas afirmam que a derrota de Donald Trump é fundamental para a manutenção da democracia e de suas instituições não somente naquele país. Há evidentemente diferenças nada desprezíveis entre os dois; diferenças que talvez se acentuem caso Kamala Harris seja a candidata do Partido Democrata: um feroz anti-imigrante contra uma descendente de indianos, um que recebe o vibrante apoio de membros da Ku Klux Klan e outros segmentos de extrema-direita e uma afrodescendente que conta com a simpatia de liberais e de organizações progressistas. Enfim, há realmente muitas diferenças a lhes distinguir. Contudo, nas questões centrais que dizem respeito à manutenção do poder hegemônico dos EUA essas diferenças se diluem substancialmente. As guerras continuarão a ser travadas, estimuladas, monitoradas e controladas como sempre foram; os segmentos considerados inimigos serão perseguidos, combatidos, mantidos à distância ou eliminados;  os "amigos" continuarão a ser vigiados pelas agências de informações; a poderosa propaganda do "nós contra eles" permanecerá ativa; os recursos naturais do planeta serão buscados a qualquer custo, financiada sua exploração e haverá pressão para que as empresas estadunidenses adquiram o controle dos mesmos; novas "lava-jatos" serão instauradas; as "guerras híbridas" que consistem, entre outras estratégias, em desestabilizar regimes/governos considerados inimigos ou pouco parceiros continuarão a ser apoiadas mundo afora (dinheiro, pessoal e guerra de propaganda), tais como o Movimento Brasil Livre (MBL) e o Vem Pra Rua em nosso país durante o governo Dilma Roussef ou setores neonazistas na Ucrânia; o apoio ao genocídio israelense contra palestinos(as) manter-se-á firme. Essas agendas unem os Partidos Democrata e Republicano. A história estadunidense comprova essa convergência de interesses estratégicos.

No Brasil, diversos capitalistas liberais não tiveram qualquer pudor em apoiar capitalistas de extrema-direita como Jair Bolsonaro nas eleições de 2018; entre eles banqueiros, donos de emissoras de televisão e de rádio e até mesmo um certo e "meigo" apresentador de televisão hoje empenhado em alçar Tarcísio de Freitas, atual governador de São Paulo, o "Bolsonaro paulista", à condição de candidato à Presidência da República. Para isso será necessário envidar esforços a fim de "humanizar a extrema-direita" junto a opinião pública.

Segundo o sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman, sociedades de diferentes épocas sempre produziram seus "estranhos" seja por motivos cognitivos, morais ou estéticos. Os estranhos são aquelas pessoas que de alguma forma não se encaixam no padrão dominante. São os/as que tentam ultrapassar as fronteiras e os limites estabelecidos e que por conta disso causam mal-estar aos/às que impõem a ordem a ser seguida. Olho para o Brasil e minha percepção é que os/as estranhos(as) de Bauman referem-se aos pretos e às pretas que teimam em entrar na universidade, aos povos indígenas e comunidades tradicionais que teimam em manter seus modos de vida e territórios sob controle coletivo, os/as moradores(as) das favelas que não aguentam mais a violência do Estado ou que resolveram "ocupar" as praias dos bacanas, os/as artistas das periferias que passam a frequentar os ambientes dos grã-finos. Mas também pode ser o Vinicius Junior que resolveu peitar os racistas espanhóis.

Jamais esqueçamos isso: há limites, fronteiras que não podem ser ultrapassados. Por conseguinte, o/a capitalista liberal sempre apoiará as lutas feministas ou contra o racismo desde que não coloquem em xeque a ordem estabelecida. Isto é, desde que essas lutas mantenham-se desconectadas de seu caráter de classe. O/A capitalista de extrema-direita, nem isso. O/A capitalista liberal sempre apoiará a realização de eleições regulares, o revezamento no exercício do governo e a liberdade de expressão desde que a esquerda ou os segmentos progressistas não se atrevam a mexer no que lhes é mais sagrado: a propriedade privada. O/A capitalista de extrema-direita quer simplesmente eliminar quem lhes faz oposição. O/A capitalista liberal apoiará as lutas pela conservação das florestas e pelo direito de povos indígenas e comunidades tradicionais aos seus territórios desde que estes não imponham restrições a entrada de novas terras ao mercado, que não impeçam a alocação de projetos de infraestrutura logística que conectem as áreas ricas em recursos naturais ao comércio globalizado, que aceitem ter seus conhecimentos ancestrais apropriados por poderosos conglomerados econômicos nacionais e transnacionais na produção de cosméticos, remédios e outros produtos sem que lhes sejam reconhecidos seus direitos de patente; ou que aceitem participar das alternativas de mercado às mudanças climáticas, por exemplo. O capitalista de extrema-direita quer mais é que as políticas e órgãos ambientais "explodam".

As nuances existem. Todavia, os limites impostos por ambos capitalistas jamais nos farão superar as mazelas criadas e sustentadas pelo sistema, pois o contrário significaria a destruição do mesmo. As agudas contradições que se aprofundam no decorrer do tempo tendem a tornar a violência, em suas diferentes modalidades, o recurso a ser empregado com vigor e sem qualquer hesitação. Apoiar as alternativas autoritárias, por exemplo, nunca deixou de estar no cardápio dos/das liberais. A história do fascismo italiano ou da ditadura civil-militar no Brasil são modelares. E assim continuará por longo período. O problema é que muitos setores do nosso campo acreditam piamente que poderão alcançar mudanças duradouras flertando com o programa dos capitalistas liberais, ou buscando incorporar segmentos extremistas à base de apoio de seus governos sem construir efetivamente um contrapoder, uma contrahegemonia. Muito estranho...