quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

A democracia virou um problema. Que tal destruí-la?

Numa troca de mensagens recentemente realizada com o meu amigo Sérgio Martins chegamos a um ponto comum: a democracia se tornou um estorvo ao grande capital. Evidentemente, muitas outras pessoas pensam da mesma forma. O juiz Rubem Casara, por exemplo, em seu livro Estado pós-Democrático: neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis, levanta uma questão da mais alta relevância: vivemos realmente num Estado Democrático de Direito? Segundo Casara, a racionalidade neoliberal colonizou o Estado e isto tem consequências brutais sobre quem sofre arbitrariedades de todos os tipos. Observem o que ele diz numa entrevista concedida a Sergio Rodas, da publicação Consultor Jurídico*:
A racionalidade neoliberal é esse modo de ver e atuar no mundo que faz com que tudo e todos sejam tratados como objetos negociáveis. Essa racionalidade colonizou o Estado, as instituições, as pessoas e inclusive o Direito, fazendo, por exemplo, com que as garantias fundamentais passassem a ser percebidas como obstáculos à eficiência do Estado ou do mercado. Em linhas gerais, pode-se dizer que a racionalidade neoliberal se caracteriza tanto por transformar o mercado em modelo de todos os relacionamentos como por seguir a lógica da concorrência e o ideal de ilimitação, instaurando-se uma espécie de "vale tudo" por dinheiro e sucesso.
Indagado se o Estado Pós-Democrático é uma tendência mundial, Casara respondeu:
É uma consequência necessária daquilo que vários teóricos chamam de racionalidade neoliberal. Isso se dá em todo o mundo. Por evidente, em países lançados em uma tradição autoritária, em democracias de baixa intensidade, a pós-democracia se instala de maneira quase imperceptível. Um país como o Brasil, no qual parcela considerável da população prefere apostar no uso da força em detrimento do conhecimento, marcado tanto pela naturalização da desigualdade e da hierarquização entre as pessoas quanto pelo medo da liberdade, a pós-democracia se instalou sem enfrentar resistência.
O fato é que o chamado jogo democrático marcado por eleições regulares (supostamente livres), revezamento no comando do Estado, implementação de políticas inclusivas, respeito às garantias individuais e coletivas, típicas do liberalismo, mesmo quando não colocadas verdadeiramente em prática, são consideradas cada vez mais como obstáculos à livre expansão do grande capital; melhor dizendo, ao livre controle de territórios e dos recursos neles disponíveis, das riquezas produzidas socialmente, da renda, do poder, das pessoas, da comunicação, dos pensamentos, dos comportamentos, dos afetos, dos imaginários... Enfim, uma sociedade onde a única regra seja aquela imposta pelo mercado desregulamentado. Nesta, a pulsão da morte é a diretriz que comanda as ações dos "donos do poder", dos blocos hegemônicos, pois nela já não há sentido para a existência de grande parte da humanidade, de modos de vida diferenciados, de diversidade de gênero, das variadas formas de professar a fé; vertente onde o racismo, o patriarcado, a xenofobia e a homofobia são negados. Alias, tal negação alcança a própria história e a ciência.

A volta do que nunca foi.

Neste cenário, mesmo governos cuja "utopia" seja a conciliação entre capital e trabalho, uma espécie de "capitalismo democrático", não servem. Contra eles também se estabelecem estratégias para constrangê-los, adequá-los, enfraquecê-los ou derrubá-los. As hordas alimentadas cotidianamente pelo ódio são o braço armado das novas bestas do Apocalipse. Elon Musk e Mark Zuckerberg estão aí para provar como funciona. Tudo em perfeita sintonia com os "falcões de Washington".

Certa vez o pensador Immanuel Wallerstein afirmou que a pior coisa para o próprio capitalismo é o mercado desregulamentado, pois o princípio de "todos contra todos" sem qualquer regramento tenderia a levar o sistema ao colapso. Sem o Estado, portanto, como o instrumento a garantir a defesa do sistema dele mesmo, não haveria futuro ao capitalismo. O Estado está fraco? A questão é: para quem? Se o Estado de nada valesse por qual motivo Musk assumiu funções precisas dentro do governo Trump? Ele não está lá somente por status. Da mesma forma que Milei (Argentina) também não está ou que Bolsonaro não esteve. Há um projeto político-ideológico articulado internacionalmente de aniquilamento de direitos, da apropriação em larga escala de recursos públicos pelo rentismo, de execução de uma economia de destruição onde a reprodução do modelo está fundado na violência e na destruição da natureza.

Fico aqui pensando cá com os meus botões: o que estarão pensando os mercadores do clima sobre tudo isso? Fico só pensando...

https://www.conjur.com.br/2019-jun-02/entrevista-rubens-casara-juiz-criminal-rio-professor/

quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

Interessa fazer alianças?

A dinâmica das lutas sociais mudou completamente com a expansão da globalização capitalista neoliberal. Os obstáculos levantados por esse processo dificultam a resolução de problemas no âmbito exclusivamente locais. Mesmo questões básicas às áreas urbanas e rurais como a coleta e tratamento do lixo, por exemplo, não encontram soluções apenas nos estritos limites municipais. Ainda mais se tratando da Amazônia onde a maioria absoluta das municipalidades são completamente dependentes dos repasses de recursos estaduais e federais. Esse quadro fica ainda mais complicado no que diz respeito ao domínio de vastas extensões territoriais amazônicas pelo narcotráfico. Isto não significa de modo algum que as lutas locais perderam significado. É nos territórios que a vida encontra significados (no plural) e é a partir deles que a engrenagem das mudanças se movimenta. Todavia, boa parte das soluções somente serão alcançadas com a articulação em rede dessas mobilizações territoriais com as demais escalas - do local ao internacional.

Nossa realidade não pode ser pensada como um bolo que é feito de diversas camadas, uma sobre a outra. Não! O internacional está no local,  o local no nacional, o nacional no regional e assim por diante. Se um dia já nos foi dito que a luta da classe trabalhadora é internacional, hoje, os atores sociais contestadores do sistema são múltiplos e precisam atuar nessas diferentes escalas, ao mesmo tempo. O fato é que qualquer organização que não esteja preparada para essa nova situação tende a sucumbir. Esta dinâmica serve para as lutas por saúde, educação, regularização fundiária, coleta e tratamento de esgoto, defesa da democracia, enfrentamento às crises climática e ambiental e outras mais.

A vida passa por aqui.


A realização da COP-30 na Amazônia contribuiu de certa forma com processos já em andamento de construção de convergências entre organizações das sociedades civis do Brasil e de outros países que almejam estabelecer objetivos e programas comuns de ação, compartilhamento de expertises e recursos. É o caso, por exemplo, de iniciativas como a Cúpula dos Povos, o Movimento pela Terra e Pelo Clima, a COP das Baixadas, a COP do Povo, o Fórum Social Pan-Amazônico (FOSPA) e a Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM).

São muitas as iniciativas agregando a diversidade de atores sociais da região e de fora dela em torno de redes (multi)temáticas: agroecologia, ambientalismo, reforma urbana, luta contra o patriarcado, defesa dos direitos socioterritoriais de povos indígenas e comunidades tradicionais, monitoramento do setor financeiro e de grupos empresariais, fortalecimento da democracia e de suas instituições, entre outros. Todavia, profundas divergências vieram à tona tendo como centralidade o debate acerca das alternativas às crises climática e ambiental e ao modelo hegemônico de desenvolvimento. A relação da exploração do petróleo com a transição energética é um exemplo de problemática que muitas vezes coloca em posições opostas integrantes do campo progressista/contrahegemônico.

Por outro lado, os blocos hegemônicos de poder interessados em fazer expandir o controle do grande capital sobre os territórios e seus recursos têm colocado em prática uma das máximas da estratégia de poder/militar: dividir para governar. Nesse sentido, estabelecem parcerias com organizações da sociedade civil e desembolsam vultosos recursos às mesmas, realizam pressões de todo tipo, ameaçam, destroem políticas públicas inclusivas, cooptam organizações de base e suas lideranças e contam, inclusive, com a efetiva participação de parcelas dos movimentos sociais e de ONGs, além de integrantes de instituições de ensino e pesquisa. O “marketing verde” na mídia corporativa é outra dessas ações, utilizando fartamente a imagem de figuras públicas que contam com a simpatia de população. Isso tudo tem contribuído ao recrudescimento de divisões no interior do campo progressista.

O momento atual apresenta condições adequadas para o estabelecimento de fortes e duradouras alianças em defesa da Amazônia e da vida no planeta. Mais do que nunca a constituição de uma Aliança dos Povos da Floresta é necessária. Chico Mendes continua vivo, atual. Uma poderosa rede desse tipo teria condições de atuar nas diferentes escalas, promover massivas mobilizações sociais e efetivamente atravancar o projeto destruidor capitalista neoliberal na perspectiva de outros modelos alternativos. Então, por que as grandes organizações da Amazônia brasileira não avançam nesse sentido? Quais obstáculos impedem o estabelecimento de alianças estratégicas? As possíveis divergências existentes impedem o alcance desse objetivo? É possível a mediação desse processo? Alguém se disporia a dar o primeiro passo?

Chico Mendes: mais atual do que nunca.

Em tese, ganhos de curto e médio prazos obtidos a partir de pressões, negociações e parcerias com o governo federal e/ou outras instituições não impedem a busca por alianças estratégicas em torno de um projeto contrahegemônico, de longo prazo. A questão é complexa e ao mesmo tempo simples: o capitalismo nos levará à morte, porque a morte é a mola que alavanca o sistema. A morte em vida, inclusive, de pessoas e/ou organizações.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

Aquaman 2 e o engodo sobre as crises climática e ambiental.

Engodo pode ser compreendido como um "artifício com que se tenta atrair, aliciar ou induzir alguém; ardil, manobra, tapeação". Ou seja, engodo tem o mesmo significado de cilada. Mas o que isso tem a ver com o filme Aquaman 2: O Reino Perdido, lançado em 2023? Vamos começar com um resumo do filme. Aquaman vive tranquilo cuidando do seu filho e, ao mesmo, tempo, governa o reino de Atlântida. Tarefa, aliás, que ele acha enfadonha, um saco. Lá pelas tantas Arraia Negra, um de seus inimigos e interpretado por um ator negro, põe em prática um plano para libertar uma força maligna presa há séculos por conta de um feitiço. Essa força do mal está congelada. Qual então é o plano do Arraia Negra? Acelerar o aquecimento global que já vinha acontecendo, utilizando um tipo de combustível altamente poluente escondido no fundo do oceano. O derretimento das calotas polares era necessário para se chegar ao vilão aprisionado e libertá-lo.

É preciso dizer que a tal força maligna orienta Arraia Negra para que se aproprie de armamentos e veículos criados a partir de tecnologias antigas, assim como de um tridente que lhe dá grande poder. Por conta disso, Aquaman tem que superar suas divergências com o irmão e fazer com este uma aliança que garanta a sobrevivência de Atlântida e do próprio planeta, além de impedir o retorno do coisa ruim.


O filme desenrola-se com muita luta, uso de armas e de animais marinhos nos conflitos. Um típico filme de ação. Porém, o detalhe mais importante está no final. Depois de derrotar o Arraia negra, que prefere morrer do que entregar-se, Aquaman convence os povos dos oceanos - sim, são vários povos - a iniciar contato com o povo da superfície para estabelecer alianças em nome da vida e da preservação do planeta. Por conta disso, Aquaman assume o posto de embaixador de tais povos junto a uma espécie de ONU. No discurso em que se apresenta, Aquaman fala da importância da cooperação mútua, particularmente na área tecnológica, para salvar as diferentes espécies. E aqui está o ponto central do que queremos abordar.

Todas e todos sabemos do poder das mensagens subliminares presentes nas produções cinematográficas de Hollywood. Nelas, os Estados Unidos sempre aparecem como povo e governos amantes da liberdade, os que defendem o mundo das denominadas por eles como forças do mal e/ou totalitárias; os que são comprometidos com a vida, a democracia e suas instituições. Não à toa a bandeira estadunidense aparece ao final de muitos filmes, como os do Homem-Aranha ou Super-Homem.

No filme do Aquaman o capitalismo não existe. Não é a força destruidora deste que está levando o planeta cada vez mais perto do precipício. Não é a sanha deste por lucro que está promovendo a destruição de ecossistemas e colocando em risco grandes parcelas da população mundial. Por outro lado, de acordo com o filme, a saída ao caos que nos encontramos está na tecnologia e não na política. Mas quem controla essas tecnologias oferecidas como "alternativas"? Quem controla os capitais que as cria, patenteia e vende?

O filme Aquaman 2: O Reino Perdido é um verdadeiro canto da sereia, uma exaltação à despolitização do debate sobre as crises climática e ambiental. Suas mensagens subliminares promovem a acomodação e a crença de que os que detêm a tecnologia "irão nos salvar". Estamos diante de um discurso e um conjunto de práticas que somente interessa aos mercadores do clima, às corporações transnacionais que pretendem ganhar mais dinheiro às custas da destruição da Terra, a poderosos Estados nacionais, às empresas de consultoria e consultores(as), às ONGs-empresas, à mídia corporativa, às religiões-empresas etc... Enquanto isso, o capitalismo é o verdadeiro "Reino Perdido" que precisa ser encoberto para que seus crimes permaneçam impunes. Um espelho da COP-30?