terça-feira, 17 de março de 2015

Não devemos ser completamente contemporâneos do nosso tempo

Giorgio Agamben
Nos diz o filósofo italiano Giorgio Agamben que não podemos ser completamente contemporâneos do nosso tempo. Como podemos entender essa afirmação? Nosso tempo atual é o tempo da financeirização das relações sociais e da própria vida. O tempo da biotecnologia e da internet. A primeira evidencia a possibilidade de o domínio da cadeia do DNA propiciar desde a solução de inúmeras doenças até a produção de "armas étnicas" que sejam capazes de matar milhares (ou milhões) de pessoas pertencentes a um determinado povo que se queira eliminar; ou ainda destruir a diversidade de sementes existentes no planeta a fim de que um número minúsculo de poderosas corporações tenham o controle completo da produção de alimentos. A segunda, por sua vez, permite a diversos grupos sociais historicamente excluídos não somente se fazerem conhecidos, mas também terem suas demandas publicizadas, como também o contraponto à concentração da informação por parte da mídia corporativa, esta sob o controle de poucas famiglias. Contudo, a internet também é o instrumento que viabiliza o "cassino global" durante as 24 horas do dia, de todos os dias dos anos. É ainda o tempo das profundas e aceleradas transformações dos territórios, da "caça" insaciável do capital transnacional por novas áreas ricas em recursos naturais, que propiciem a acumulação acelerada e em larga escala, em detrimento e à revelia de povos indígenas e comunidades tradicionais. É o tempo da matematização daquilo que é intangível ou que simplesmente se imaginava impossível de ser precificado: do trabalho de polinização executado por abelhas, de um cenário maravilhoso (como um belo por do sol), do ar que respiramos, do gás carbônico, da floresta em pé. Enfim, ser contemporâneo deste tempo é estar completamente submetido à égide do capital sem pátria e sem escrúpulos. Daí ser necessário que não sejamos completamente contemporâneos, que tenhamos capacidade de "sair" do nosso tempo, observá-lo a certa distância, analisá-lo sob outras perspectivas, de "fora". Como o próprio Agamben chama atenção isto não significa que passemos a viver em outra "dimensão", alienado do que ocorre neste tempo.

O fato é que para enfrentar os enormes desafios de um dado momento histórico é fundamental não render-se a ele próprio, prender-se às evidências imediatas como se fossem a verdade em si. É bom lembrar que foi no período entre as duas grandes guerras mundiais que se consolidaram perspectivas analíticas que marcaram profundamente o século XX: a psicanálise (Freud), a teoria crítica (Escola de Frankfurt), o tempo profundo (Braudel), o Estado como planejador do desenvolvimento e de imposição de certos limites à anarquia do mercado (Keynes), a ideia de luta contra-hegemônica em vista da construção do socialismo (Gramsci) e outras mais. Ou seja, justamente no período em que a humanidade se viu capaz de destruir-se em larga escala, de profunda desesperança quanto ao futuro, eis que alguns(mas) tiveram a capacidade de "sair de seu tempo" para pensar o seu próprio momento. É interessante dizer que Braudel formulou boa parte de seu pensamento quando prisioneiro dos nazistas durante cinco anos. Portanto, em condições extremas e sem que ele tivesse qualquer certeza quanto a sua própria sobrevivência.

Mas qual o motivo de toda essa reflexão? Há um objetivo bem definido: tentar demonstrar que parte considerável da crise política que ocorre no Brasil neste momento se deve ao fato de o Partido dos Trabalhadores (PT) ter se tornado tão contemporâneo deste tempo que parece ter perdido a condição de capitanear um processo de mudanças estruturais para além da cidadania de mercado propiciada pelo aumento da capacidade de consumo das classes populares. Não por mera coincidência Marcos Valério operou tanto para o PSDB quanto para o PT. Da mesma forma o "doleiro" Youssef e outros agiram nos mesmos esquemas petistas, tucanos etc. Ou seja, "entrou no jogo" sem questionar suas "regras", seus "métodos".

Ter a capacidade de não render-se completamente à contemporaneidade é fundamental para alimentar utopias, daquelas que nos levam à frente, que promovem mudanças em benefício da sociedade. E isso é algo que vem sendo sistematicamente negligenciado.

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