As chaves de leitura para tentarmos compreender as mobilizações massivas no Brasil são muitas. Tantas são as possibilidades que abrem espaço para todo tipo de regozijo ou aversão: a) Há as perspectivas dos nostálgicos da ditadura militar que se sentem incomodados com a presença de milhares de pessoas saindo às ruas para protestar; b) Há os que acreditam na possibilidade de mudar as estruturas da sociedade sem partidos, sem sindicatos, sem políticos; c) Há os dirigentes incomodados pelo fato de não estarem no comando das massas e por elas serem criticados; d) Há os bandidos do dinheiro público furiosos porque suas falcatruas podem ganhar evidência; e) Há os estudiosos encafifados porque esses movimentos não se adequam às suas categorias de análise; f) Há os militantes históricos que vêem na alegria da juventude em marcha uma fagulha de esperança de que a democracia - não apenas a formal - seja efetivamente instaurada no país; g) Há os incrédulos que acreditam serem essas mobilizações apenas uma onda que logo retornará ao seu estado de calmaria; h) Há os que controlam fatias de poder do Estado que não sabem o que dizer e se sentem envergonhados de questionar os que lhes questionam; i) Há aqueles que vêem a possibilidade de auferir ganhos de modo rápido, mesmo que seja a base de roubo de bancas de revistas, farmácias ou supermercados; j) Há os que acreditam firmemente de que a sociedade progride tão somente pela construção de consensos, daí lhes causar incômodos os protestos; k) Há os que se desesperam por morar tão longe dos seus locais de trabalho e, por conta disso, mofam por horas a espera de ônibus, vans ou outro tipo de condução; l) Há os falsos ludistas que acreditam na ideia de que quebrar o patrimônio público é uma atitude antissistêmica; m) Há os esperançosos que torcem para que haja mudanças efetivas no país; n) Há os que acreditam que as manifestações são verdadeiramente indícios de que o Apocalipse chegou; o) Há os que nos lembram que nem a luta de classes e nem a lei da gravidade foram revogadas; p) Há os querem ver o circo pegar fogo; q) Há os que temem perder privilégios; r) Há os querem ter direito a ter direito; s) Há os que pensam apenas nas eleições do ano que vem; t) Há os que como o Pelé só falam besteiras (os idiotas de sempre); u) Há os que especulam com as finanças do país; v) Há os que aproveitam a oportunidade para aprovar leis absurdas como a da Cura Gay; w) Há os que não se cansam de repetir que o povo brasileiro já protestava há muito tempo, mas que a imprensa e uma parte dos que hoje estão nas ruas ignoravam; x) Há mães e pais preocupados com a militância dos filhos e o medo de que sofram algum tipo de violência; y) Há aqueles que se preocupam com a sujeira que precisam limpar no dia seguinte aos protestos; z) Há os que estão envolvidos com a produção de teses e dissertações e não têm tempo pra ver o que está acontecendo no país. Qual a porta de entrada para analisarmos as mobilizações dos últimos dias?
Um determinado jornal estrangeiro afirmou que um dos motivos desencadeadores dos protestos seria que a classe média brasileira cresceu e agora cobra o retorno dos altos impostos pagos. É isso mesmo? A classe média brasileira se tornou revolucionária? Outra linha de raciocínio que se tornou hegemônica na cobertura jornalística veiculada pelos conglomerados da comunicação e na elite política do Brasil procura estabelecer uma divisão clara entre os que eles identificam como pacifistas e baderneiros. Para eles os primeiros são os que defendem realmente os interesses coletivos, já os segundos são aproveitadores que merecem ser presos.
Vamos por parte. Em primeiro lugar parece não ser crível que as mobilizações que ocorrem no Brasil são realizadas por uma classe média expandida, enraivecida pela péssima qualidade dos serviços públicos. Estes serviços são precários? São. É o principal motivo das passeatas? É muito difícil fazer tal afirmação. Contudo, não podemos esquecer que no início dos protestos tanto os governos quanto a mídia corporativa tentaram passar a ideia de que tudo se resumia aos R$ 0,20 (vinte centavos) de aumento das passagens de ônibus (o discurso enlouquecido de Arnaldo Jabor na televisão foi antológico). A diferença agora é que os grandes grupos de comunicação abandonaram essa tese e partem para colocar o governo federal como a única mira dos protestos, mas os governos estaduais e prefeituras continuam a acreditar que a redução dos preços em alguns míseros centavos será suficiente para arrefecer os ânimos da galera. Será? Por outro lado, devemos ter em mente que a sanha privatista é o principal motor de muitas das críticas feitas contra os serviços públicos no nosso país por parte daquele que os vêem apenas como uma grande oportunidade de negócios. E essa perspectiva pouco tem a ver com as demandas da grande maioria da população que acessa postos de saúde, hospitais ou escolas públicas.
Em segundo lugar a rotulagem que distingue pacifistas e baderneiros merece ser analisada com cautela. Evidentemente não se pode concordar, em hipótese alguma, com atos de banditismo cometidos contra cidadãos comuns ou pequenos comerciantes que tiveram seus empreendimentos saqueados, e mesmo a depredação de prédios históricos. Nos parece que não há divergências substantivas quanto a isso. Porém - sim, há um porém -, as elites sempre trataram como baderneiros todos aqueles que tentam de algum modo subverter a ordem, mesmo que ela seja profundamente injusta. Aliás, certa vez nos disse Martin Luther King Jr. que "temos o dever moral de desobedecer a leis injustas". E há algo mais injusto do que a miséria, a fome ou a falta de moradia? O governador Geraldo Alckmin (PSDB-SP) não teve qualquer escrúpulos quando chamou de baderneiros os ocupantes de Pinheirinho, ou as pessoas que depredaram trens que atravessavam a periferia de São Paulo por conta das sucessivas quebras dos equipamentos e dos frequentes atrasos a que estavam submetidos por conta desse problema.
Permitam-me inserir uma passagem da análise feita por Slavoj Zizek sobre o medo instaurado (e trabalhado) na sociedade estadunidense após os atentados de 11 de Setembro, pois acredito que ela nos ajuda de certa forma a refletir sobre a questão acima:
(...) O estado em que vivemos hoje, de "guerra ao terror", é o estado da ameaça terrorista eternamente suspensa: a Catástrofe (o novo ataque terrorista) é considerada certa, mas ela é indefinidamente adiada - o que vier a acontecer, ainda que seja um ataque muito mais horrível do que o de 11 de Setembro, não será "aquele". E aqui é crucial que se entenda que a verdadeira catástrofe já é esta vida sob a sombra da ameaça permanente de uma catástrofe.
Recentemente, Terry Eagleton chamou atenção para os dois modos opostos de tragédia: o Evento grande, espetacular, catastrófico, a irrupção abrupta vinda de outro mundo, e a árida persistência de uma condição sem esperança, a frustrante existência que continua indefinidamente, a vida como uma longa emergência. Essa é a grande diferença entre as grandes catástrofes do Primeiro Mundo, como o 11 de Setembro, e a árida catástrofe permanente dos, por exemplo, palestinos da Margem Ocidental. O primeiro tipo de tragédia, a figura contra o cenário "normal", é característico do Primeiro Mundo, ao passo que, em grande parte do Terceiro, catástrofe designa o próprio cenário sempre presente (ZIZEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do real: cinco ensaios sobre o 11 de Setembro e datas relacionadas. São Paulo : Boitempo Editorial, 2003, p. 12-13 - grifo nosso).
A catástrofe materializada no abuso policial, na dilapidação do patrimônio público para que seja repassado a grandes grupos privados - como ocorre com o crescente domínio de Eike Batista, particularmente no Rio de Janeiro -, no assassinato de jovens da periferia por grupos de extermínio, no ônibus lotado e caro de todos os dias, no assédio moral nos locais de trabalho, no machismo que leva ao assassinato e a outras formas de violência contra as mulheres, na corrupção governamental, na falta de transparência e de controle social - apesar de próximas não são a mesma coisa -, nos serviços públicos e privados de péssima qualidade (quem não tem queixa contra as empresas de telefonia e de planos de saúde que levante a mão), na existência de cidades excludentes para velhos e portadores de necessidades especiais, nas enchentes recorrentes das casas, no desmoronamento dos morros, nas secas e na indústria da seca, na falta de postos de saúde e de escolas, na ausência de perspectivas promissoras aos jovens, no uso de trabalho infantil, no terror promovido pelas miliciais, na falta de emprego e de moradia, para citar apenas alguns exemplos, são cenários sempre presentes entre pobres e desvalidos de todo tipo. Podemos considerá-los baderneiros? É a classe média ensandecida contra os impostos?
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