sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

VIVEMOS UM DEJÀ VU?
Guilherme Carvalho*

É muito comum vivermos certas situações que parecem repetir algo que já havíamos experimentado. Essas ocorrências são denominadas dejà vu, um termo da língua francesa que significa já visto. Ocorre, porém, que essa sensação de já ter vivido um determinado evento parece não se restringir ao campo estritamente pessoal, mas se estende à nossa vida em sociedade. Daí alguns identificarem a história humana como um ciclo em seu movimento de auge e de queda, ou ainda como um círculo que nos faria prisioneiros de um eterno retorno. Consideramos ambas perspectivas limitadas para compreendermos a complexidade do real. Todavia, é forçoso reconhecer que alguns fatos persistem de tal maneira ao longo do tempo que parecem se constituir numa reprodução infinita do mesmo.
O assalto ao poder pelos militares brasileiros em 1964 foi justificado por eles como uma medida necessária para livrar o país da ameaça comunista. Para isso contou com a colaboração de grandes grupos públicos e privados de comunicação, de parcelas majoritárias do judiciário, do empresariado e do parlamento, de vários segmentos da sociedade civil nacional, bem como do apoio logístico e de informações dos Estados Unidos.
Presidentes militares
Além da ameaça comunista os militares buscaram incutir na população a ideia de que somente eles seriam capazes de garantir as condições necessárias para fazer o país progredir. O discurso do progresso foi, portanto, uma importante ferramenta ideológica para atrair o apoio da população às ações repressivas desencadeadas pelo bloco de poder que se apoderou do aparelho do Estado contra os opositores do regime, às restrições à liberdade e aos planos macroeconômicos.
Em nome desse suposto progresso a Amazônia foi definitivamente escancarada aos conglomerados econômicos nacional e internacional através da abertura de grandes rodovias como a Transamazônica, concessão de fartos subsídios para a instalação dos mesmos na região, criação de facilidades que garantiram o monopólio de vastas extensões do território amazônico aos setores que compunham o bloco de poder capitaneado pelos militares etc. O Estado brasileiro foi fundamental para o bom êxito dessa estratégia de ocupação e de controle territorial. Todavia, as consequências disso tudo não foram pequenas e repercutem ainda hoje:
Que lições podem ser extraídas da política regional de ocupação do território? O privilégio a ser atribuído aos grandes grupos e a violência da implantação acelerada da malha tecno-política, que tratou o espaço como isótropo e homogêneo, com profundo desrespeito pelas diferenças sociais e ecológicas, teve efeitos extremamente perversos nas áreas onde foi implantada, destruindo, inclusive, gêneros de vida e saberes locais historicamente construídos. Essas são lições a aprender como não planejar uma região. (BECKER, 2005, p. 26)
Eis que entramos no túnel do tempo e surgimos em pleno governo de Dilma Roussef. Dois meses antes da realização da Conferência Rio+20 a presidente da República reuniu-se com organizações da sociedade civil integrantes do Fórum do Clima, no Palácio do Planalto. Em resposta às críticas suscitadas pelo fórum em relação à política do governo federal de construir novas hidrelétricas na Amazônia, a presidente foi enfática: o governo não mudará sua estratégia de aumentar a oferta de energia utilizando o máximo possível o potencial dos rios amazônicos. A presidente foi além. Disse aos ambientalistas que “o mundo real não trata de tema ‘absurdamente etéreo ou fantasioso’”. Afirmou ainda que ninguém “numa conferência dessas também aceita, me desculpem, discutir a fantasia. Ela não tem espaço para a fantasia. Não estou falando da utopia, essa pode ter, estou falando de fantasia” (BNDES DÁ NOVO CRÉDITO..., 2012, não paginado). Para finalizar, assegurou que trabalharia pelo desenvolvimento sustentável, para tirar as pessoas da pobreza e tentar compatibilizar progresso e respeito ao meio ambiente.
Hidrelétricas na Amazônia
Também o ministro das Minas e Energia, Edson Lobão, recorre reiteradamente à defesa do progresso e do desenvolvimento da Amazônia para rebater as críticas de diferentes segmentos sociais do Brasil e do exterior preocupados com os impactos do erguimento de dezenas de barragens previstas para a região até 2050. A defesa do progresso, portanto, tem servido de anteparo a qualquer questionamento à intenção do Estado brasileiro e, evidentemente, de grandes conglomerados econômicos nacionais e internacionais de tornar a Amazônia a província energética brasileira, sem que se saiba ao certo as consequências dessa iniciativa não somente para a região, mas para o clima de todo o planeta.

Na coletânea de poemas intitulada Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles, há uma linda referência sobre a liberdade, onde afirma ser esta um sonho humano que ninguém consegue explicar, mas que não há quem não entenda (MEIRELES, 2005). O que aconteceria se substituíssemos a palavra liberdade por progresso? Quem em sã consciência não almeja progredir? Quem não entende o que ela significa? Todavia, o que ela significa?
Progresso é uma daquelas palavras que se encontra estreitamente vinculada à “credibilidade ou ao poder de quem a pronuncia” (DUPAS, 2006, p. 17). Afinal de contas, quem determina o “rumo” do progresso? Dupas recorre à fala do “gnomo irascível Humpty Dumpty”, presente em Alice no país das maravilhas, escrita por Charles Lutwidge Dodgson e publicada em 1865, para refletir sobre essa questão:
Quando utilizo uma palavra, ela significa precisamente aquilo que eu quero que ela signifique. Nada mais, nada menos’. Alice contesta que ‘o problema está em saber se é possível fazer que uma palavra signifique montes de coisas diferentes’. Ao que Humpty Dumpty replica ativamente: ‘O problema está em saber quem é que manda. Ponto final’ (LALANDE apud DUPAS, 2006, p. 17, grifo do autor).
Parlamentares, mídia, pessoas comuns e mesmo o judiciário também utilizam o progresso como uma espécie de vacina que imuniza as hidrelétricas e qualquer outro grande empreendimento, publico ou privado, de contestações de todo tipo; na grande maioria das vezes independentemente da justeza e/ou embasamento dos questionamentos. Que o digam os pesquisadores que integraram o Painel Independente de Especialistas, cujas conclusões chocaram-se frontalmente com diversas afirmações do Estudo de Impacto Ambiental apresentado pelas empresas interessadas na construção da usina de Belo Monte, no rio Xingu.
O fato é que o progresso se tornou parte constitutiva do discurso do poder. Assim foi durante a ditadura militar no Brasil, nos governos Juscelino Kubitschek, Eurico Gaspar Dutra e Getúlio Vargas; nos primórdios da República com o lema Ordem e Progresso incrustado na bandeira nacional e mesmo durante o Império. Da mesma forma, a palavra progresso foi utilizada pelas diferentes coalizões de poder que estiveram à frente do Estado brasileiro após a redemocratização do país para afirmarem-se diante da população e delas conquistar o reconhecimento e apoio.
É a partir da noção de progresso que a Amazônia tem sido refletida pelas coalizões de poder que estiveram à frente do Estado brasileiro até o presente momento, assim como fundamenta a implementação do atual modelo hegemônico de desenvolvimento, cuja característica é basear-se na exploração intensiva dos recursos naturais aqui existentes. O progresso, então, assume o papel de servir como um ponto de inflexão, de separação entre o antes e o depois, entre retrocesso e avanço, entre passado e futuro. Exemplo: a Amazônia é atrasada daí ser necessário levar o progresso a ela para que a mesma seja definitivamente integrada ao restante do território nacional, através do estímulo ao deslocamento de empreendedores para o seu território, assim como do capital necessário para desenvolvê-la. Tal visão pode ser encontrada como fundamento das políticas dos governos Vargas, Médici e, mesmo, de Dilma Roussef, entre outros.
Que progresso?
Fica evidente que progresso também guarda um sentido civilizatório. É como se o mesmo fosse um ato de redenção de povos primitivos, ou de sociedades atrasadas. Para que tal perspectiva se imponha é necessário que seja estabelecida alguma referência do que se considera “estágio avançado”. Por muito tempo essa referência foi a Europa, agora, a designação genérica são os países “desenvolvidos”. À Amazônia resta espelhar-se na dinâmica econômica do centro-sul do Brasil ou de outros países e tentar, quem sabe, rumar em direção a elas, tal como preconizado por Rostow (1978) e sua ideia do desenvolvimento em etapas. Apesar de ficar cada vez mais evidente que não há lugar para todos no banquete do progresso, como bem demonstrado por Chang (2004). O progresso é utilizado para justificar o discurso hegemônico da acumulação. Todavia, a promessa de um futuro próspero se vê permanentemente confrontada com a situação precária de parcelas significativas da população.
Vivemos um dejà vu? Hoje como ontem o Estado brasileiro se apresenta como o grande impulsionador da apropriação privada de grandes extensões do território amazônico e de seus recursos, em detrimento dos interesses e dos modos de vida de povos indígenas e populações tradicionais – ribeirinhos, extrativistas, agricultores familiares e outros. Também utiliza o forte aparato repressivo para coagir, impedir e criminalizar movimentos sociais e ONGs que se opõem a este modelo de desenvolvimento intensivo no uso da terra, água e outros componentes da natureza e, acima de tudo, disseminador de conflitos e gerador de crescentes desigualdades socioambientais. Como antes se tenta passar a ideia de que o mercado – suas instituições e suas regras – serão capazes de fazer com que a Amazônia se desenvolva, retirando milhões de amazônidas da pobreza. Cinquenta anos depois da instalação da mais brutal ditadura no Brasil a reprodução do mesmo parece não ter fim.

Bibliografia
BECKER, Bertha. Amazônia: nova geografia, nova política regional e nova escala de ação. In. Amazônia Sustentável: Desenvolvimento sustentável entre políticas públicas, estratégias inovadoras e experiências locais / Martin Coy e Gerd Kohlhepp (coord.). – Rio de Janeiro : Garamond ; Tübinger, Alemanha : Geographischen Instituts der Universität Tübingen, 2005. p. 23-44.
BNDES dá novo crédito de R$ 2,5 bi a Jirau. O Estado de São Paulo, 28 set. 2012. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,bndes-da--novo-credito-de-r-25-bi-a-jirau, 937061,0.htm>. Acesso em: 13 out. 2012.
CHANG, Ha-Joon. Chutando a escada: a estratégia de desenvolvimento em perspectiva histórica. Tradução de Luiz Antônio Oliveira de Araújo. São Paulo: UNESP, 2004.
DUPAS, Gilberto. O mito do progresso, ou progresso como ideologia. São Paulo: UNESP, 2006.
MEIRELES, Cecília. Romanceiro da Inconfidência. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
ROSTOW, W. W. Etapas do desenvolvimento econômico. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1978.




* Doutor em Ciência do Desenvolvimento Socioambiental pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará – NAEA/UFPA e coordenador da ONG FASE Programa Amazônia.