As eleições nos Estados Unidos ganham novos contornos após a desistência de Joe Biden de concorrer às eleições deste ano. Analistas afirmam que a derrota de Donald Trump é fundamental para a manutenção da democracia e de suas instituições não somente naquele país. Há evidentemente diferenças nada desprezíveis entre os dois; diferenças que talvez se acentuem caso Kamala Harris seja a candidata do Partido Democrata: um feroz anti-imigrante contra uma descendente de indianos, um que recebe o vibrante apoio de membros da Ku Klux Klan e outros segmentos de extrema-direita e uma afrodescendente que conta com a simpatia de liberais e de organizações progressistas. Enfim, há realmente muitas diferenças a lhes distinguir. Contudo, nas questões centrais que dizem respeito à manutenção do poder hegemônico dos EUA essas diferenças se diluem substancialmente. As guerras continuarão a ser travadas, estimuladas, monitoradas e controladas como sempre foram; os segmentos considerados inimigos serão perseguidos, combatidos, mantidos à distância ou eliminados; os "amigos" continuarão a ser vigiados pelas agências de informações; a poderosa propaganda do "nós contra eles" permanecerá ativa; os recursos naturais do planeta serão buscados a qualquer custo, financiada sua exploração e haverá pressão para que as empresas estadunidenses adquiram o controle dos mesmos; novas "lava-jatos" serão instauradas; as "guerras híbridas" que consistem, entre outras estratégias, em desestabilizar regimes/governos considerados inimigos ou pouco parceiros continuarão a ser apoiadas mundo afora (dinheiro, pessoal e guerra de propaganda), tais como o Movimento Brasil Livre (MBL) e o Vem Pra Rua em nosso país durante o governo Dilma Roussef ou setores neonazistas na Ucrânia; o apoio ao genocídio israelense contra palestinos(as) manter-se-á firme. Essas agendas unem os Partidos Democrata e Republicano. A história estadunidense comprova essa convergência de interesses estratégicos.
No Brasil, diversos capitalistas liberais não tiveram qualquer pudor em apoiar capitalistas de extrema-direita como Jair Bolsonaro nas eleições de 2018; entre eles banqueiros, donos de emissoras de televisão e de rádio e até mesmo um certo e "meigo" apresentador de televisão hoje empenhado em alçar Tarcísio de Freitas, atual governador de São Paulo, o "Bolsonaro paulista", à condição de candidato à Presidência da República. Para isso será necessário envidar esforços a fim de "humanizar a extrema-direita" junto a opinião pública.
Segundo o sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman, sociedades de diferentes épocas sempre produziram seus "estranhos" seja por motivos cognitivos, morais ou estéticos. Os estranhos são aquelas pessoas que de alguma forma não se encaixam no padrão dominante. São os/as que tentam ultrapassar as fronteiras e os limites estabelecidos e que por conta disso causam mal-estar aos/às que impõem a ordem a ser seguida. Olho para o Brasil e minha percepção é que os/as estranhos(as) de Bauman referem-se aos pretos e às pretas que teimam em entrar na universidade, aos povos indígenas e comunidades tradicionais que teimam em manter seus modos de vida e territórios sob controle coletivo, os/as moradores(as) das favelas que não aguentam mais a violência do Estado ou que resolveram "ocupar" as praias dos bacanas, os/as artistas das periferias que passam a frequentar os ambientes dos grã-finos. Mas também pode ser o Vinicius Junior que resolveu peitar os racistas espanhóis.
Jamais esqueçamos isso: há limites, fronteiras que não podem ser ultrapassados. Por conseguinte, o/a capitalista liberal sempre apoiará as lutas feministas ou contra o racismo desde que não coloquem em xeque a ordem estabelecida. Isto é, desde que essas lutas mantenham-se desconectadas de seu caráter de classe. O/A capitalista de extrema-direita, nem isso. O/A capitalista liberal sempre apoiará a realização de eleições regulares, o revezamento no exercício do governo e a liberdade de expressão desde que a esquerda ou os segmentos progressistas não se atrevam a mexer no que lhes é mais sagrado: a propriedade privada. O/A capitalista de extrema-direita quer simplesmente eliminar quem lhes faz oposição. O/A capitalista liberal apoiará as lutas pela conservação das florestas e pelo direito de povos indígenas e comunidades tradicionais aos seus territórios desde que estes não imponham restrições a entrada de novas terras ao mercado, que não impeçam a alocação de projetos de infraestrutura logística que conectem as áreas ricas em recursos naturais ao comércio globalizado, que aceitem ter seus conhecimentos ancestrais apropriados por poderosos conglomerados econômicos nacionais e transnacionais na produção de cosméticos, remédios e outros produtos sem que lhes sejam reconhecidos seus direitos de patente; ou que aceitem participar das alternativas de mercado às mudanças climáticas, por exemplo. O capitalista de extrema-direita quer mais é que as políticas e órgãos ambientais "explodam".
As nuances existem. Todavia, os limites impostos por ambos capitalistas jamais nos farão superar as mazelas criadas e sustentadas pelo sistema, pois o contrário significaria a destruição do mesmo. As agudas contradições que se aprofundam no decorrer do tempo tendem a tornar a violência, em suas diferentes modalidades, o recurso a ser empregado com vigor e sem qualquer hesitação. Apoiar as alternativas autoritárias, por exemplo, nunca deixou de estar no cardápio dos/das liberais. A história do fascismo italiano ou da ditadura civil-militar no Brasil são modelares. E assim continuará por longo período. O problema é que muitos setores do nosso campo acreditam piamente que poderão alcançar mudanças duradouras flertando com o programa dos capitalistas liberais, ou buscando incorporar segmentos extremistas à base de apoio de seus governos sem construir efetivamente um contrapoder, uma contrahegemonia. Muito estranho...