segunda-feira, 8 de julho de 2019

A doença nossa de cada dia.

O desmonte do indivíduo.
Durante a semana que passou recebi por whatsapp uma charge em que o médico perguntava ao paciente onde doía. Este, por sua vez, respondia: "a realidade". De fato, a realidade tem se mostrado muito dura, particularmente às pessoas que definem o capitalismo como um sistema incapaz de resolver os principais males que afligem a humanidade. Para estas a destruição das políticas sociais inclusivas, o desmantelamento do Estado nacional, o recrudescimento das desigualdades, os ataques aos direitos humanos, a desconstrução da democracia e o avanço destruidor sobre o meio ambiente doem de maneira profunda.
Vivemos numa sociedade doente que custa a reconhecer-se dessa maneira. A algum tempo atrás li sobre uma pesquisa realizada em Paris na qual os/as cientistas recolheram amostras das águas dos esgotos da capital francesa para analisá-las. Os resultados divulgados evidenciaram que os parisienses estavam consumindo quantidade expressiva de medicamentos antidepressivos, antibióticos e outros cuja venda é controlada. Certamente um  sinal de alerta importante não somente para quem vive naquela cidade. Todavia, numa sociedade capitalista (re)alimentada pela busca incessante do lucro, as doenças não se configuram num problema ou risco ao sistema posto que lhes são funcionais:
A sociedade disciplinar é uma sociedade da negatividade. É determinada pela negatividade da proibição. O verbo modal negativo que a domina é o não-ter-o-direito. Também ao dever inere uma negatividade, a negatividade da coerção. A sociedade de desempenho vai se desvinculando cada vez mais da negatividade. Justamente a desregulamentação crescente vai abolindo-a. O poder ilimitado é o verbo modal positivo da sociedade de desempenho. O plural coletivo da afirmação Yes, we can expressa precisamente o caráter da positividade da sociedade de desempenho. No lugar de proibição, iniciativa e motivação. A sociedade disciplinar ainda está dominada pelo não. Sua negatividade gera loucos e delinquentes. A sociedade do desempenho, ao contrário, produz depressivos e fracassados.¹
Na sociedade do desempenho você "tem que matar um leão a cada dia". Lutar incansavelmente para ser o/a melhor em qualquer circunstância. Não ser passado para trás. Enfim, ser competitivo. Vencer! A propaganda é uma arma poderosa dessa "motivação" mercadológica. Estude. Trabalhe. Se empenhe. Aí vem o discurso da meritocracia para dar o verniz, dourar a pílula, numa situação que é em si mesma insustentável posto que fundada em relações completamente desiguais. Mas aí os cérebros em massa "reeducados" para a competição têm dificuldades para romper com os grilhões das "motivações" da sociedade do desempenho.
O neoliberalismo é um fracasso econômico, mas poderoso dos pontos de vista político e ideológico. A sociedade como empresa moldada pela perspectiva neoliberal é o "corpo", cujo "espírito" é constituído pelos pressupostos da sociedade do desempenho. Nesta, a solidariedade foi expurgada. Em seu lugar tão somente a redenção pela esmola, pelo paternalismo e pela demagogia. Eis algumas das raízes do bolsonarismo.

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1. HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini. 2a edição ampliada - Petrópolis, RJ : Vozes, 2017, p. 24-25.

quarta-feira, 3 de julho de 2019

Sob o olhar da tristeza.

Ando pelas ruas de Belém e é visível o clima de tristeza, sofrimento. É enorme a quantidade de pessoas nos faróis pedindo esmolas: velhos, crianças, indígenas venezuelanos.... A cidade está suja, esburacada, mal sinalizada, violenta. O lixo toma conta das ruas. À prefeitura inoperante se soma parte expressiva da população que se descompromissou com a cidade. O trânsito caótico é também lugar das arbitrariedades seja do Estado, seja dos próprios condutores. O desrespeito às regras ganha força. O "clima" da cidade reúne sentimentos diversos e, algumas vezes, conflitantes. Insatisfação, medo, revolta, desesperança. A baixa estima parece ter tomado conta de mentes e corações.
"Ratos e urubus, larguem a minha fantasia"

Aliado a isso há toda a situação do país. As instituições do Estado estão em frangalhos, resultado do golpe midiático-empresarial-partidário-jurídico-civil-militar que não somente contribuiu para a descrença generalizada, ao ódio à política e aos que pensam diferente, como levou ao chão a economia e à destruição de políticas públicas inclusivas e de instâncias de participação da sociedade civil. Por outro lado, nossa capacidade de reação enfrenta muitos obstáculos. Tudo está conectado.

A democracia representativa foi capturada pelas grandes corporações. Se tornou uma mera formalidade. Na verdade, com todos os seus limites, ela própria se constituiu num estorvo ao grande capital. Bolsonaro, Trump, o governo italiano, Macri e outros são expressões dessa decadência. Não há qualquer virtude neles e nos seus blocos de poder. Quer dizer sua única virtude é mostrar sem qualquer máscara, sem tergiversar, a sua sanha em destruir os pactos construídos ao longo de quatro séculos que resultaram no princípio de que todas as pessoas têm direito a ter direitos. Mesmo com todas as contradições existentes, tal ideia orientou ações governamentais e aprovação de tratados internacionais, entre outras iniciativas. Contudo, é justamente a noção de solidariedade que vem sendo atacada, desmontada, destruída. As pessoas sentem isso na pele, nas ruas, nas periferias, nos bancos dos hospitais, no aperto dos ônibus e trens, no abandono dos asilos e dos postos de saúde.
"No frio da noite aquece o pensamento"

O professor Marildo Menegat em seu livro A crítica do capitalismo em tempos de catástrofe nos mostra de maneira objetiva que para o sistema capitalista uma parte considerável da humanidade já não tem serventia alguma. São pessoas cuja existência se tornou um estorvo ao sistema. Uma conclusão crua, dura, mas verdadeira. O desmonte da previdência, a extinção de direitos adquiridos, o aval para que os instrumentos de coerção do Estado sejam empregados até à despeito da lei, entre tantas outras situações, são provas cabais de que a barbárie está sendo naturalizada, sob aplausos de uma gama considerável da população. Os "bolsominions" não me deixam mentir.

Vejo crianças abandonadas pelas ruas e cá com os meus botões fico me perguntando: Quantos cérebros estamos desperdiçando? Quantos músicos? Quantos(as) cientistas? Quantos(as) professores(as)? E aí me dou conta de quanta alegria jogada fora. Quanto orgulho subtraído de um país. Quanta paz lançada ao limbo. Quanto afeto não vivido. Mas as ruas continuam sujas e esburacadas, as pessoas estressadas no trânsito, os postos de saúde cheios e sem estrutura. Precisamos reconstruir nossas formas de socialização. Isto é um ato revolucionário.