quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

O olhar excludente sobre a resistência social no Brasil.

Acompanho pelas redes sociais e ouço nos debates dos quais participo muitas lamentações acerca da resistência social no Brasil. Há até quem em tom de ironia defenda a importação de argentinos a fim de que estes desencadeiem um amplo processo de mobilização social no nosso país. Como diversão a ironia é bem-vinda, somente isso. É verdade que os movimentos sociais encontram grandes dificuldades para repetir em nosso país o que está ocorrendo não somente na Argentina. Os motivos são vários. Contudo, o que quero destacar aqui é a perspectiva excludente de algumas dessas análises, que simplesmente descartam do jogo político diferentes atores sociais que obstinadamente lutam contra a ditadura do capital no chão dos territórios. Além da seletividade, atrevo-me a dizer que há ainda a mescla de desconhecimento do que ocorre fora do eixo Sul-Sudeste do Brasil, resquícios de certa ortodoxia que não vê nada que não seja "capitaneado pela classe operária" e mesmo uma perspectiva colonialista, histórica, diga-se de passagem, sobre a Amazônia - podemos incluir aqui o Nordeste.

Antes das famosas e tão faladas jornadas de junho de 2013 indígenas de diversas partes do Brasil enfrentaram o governo central e o Congresso Nacional, ocupando este último a ponto de impedir a continuidade dos trabalhos dos parlamentares, quando Eduardo Cunha e sua corja encontravam-se no comando do legislativo. Isto ocorreu em abril. Como sempre, foram vítimas de violenta repressão policial. Ao final, porém, conseguiram impor parte da sua agenda ao debate no parlamento. Foram manifestações massivas, articulando variadas formas de luta e contando com o apoio de diferentes atores sociais do Brasil e do exterior. Mas dificilmente você ouvirá alguém incluir nas suas análises a contribuição dessas mobilizações para o combate a agenda neoliberal que toma conta do nosso país. O foco geralmente são as "jornadas de junho".

Dias atrás os munduruku impediram a realização de uma audiência pública em Itaituba (PA) para tratar da Ferrogrão, uma ferrovia fundamental ao agronegócio na sua sanha de controlar mais e mais territórios no país. No Pará, agricultores(as), indígenas, quilombolas, extrativistas, movimentos de mulheres e de jovens, pastorais sociais e ribeirinhos, com o apoio de pesquisadores e outros setores, têm realizado renhida oposição às tentativas do governo estadual de implantar uma ferrovia do Sul do Pará até o município de Barcarena, também para favorecer o agronegócio e as mineradoras.

Em toda a Amazônia se espalha a mobilização de povos indígenas e comunidades tradicionais para defenderem seus direitos à consulta com base nos termos da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Os povos Munduruku e Waiãpi, pescadores(as) comunidades quilombolas, ribeirinhos e outros lançaram-se com determinação para aprovarem seus protocolos como mais uma estratégia de resistência, de combate ao poder destruidor do grande capital e de construção e/ou afirmação de alternativas. Em Barcarena (PA), ribeirinhos e comunidades quilombolas bloquearam por terra e rio as entradas da Hydro, empresa norueguesa que tem provocado a morte de rios e igarapés, destruído os modos de vida de comunidades tradicionais e toda poderosa na área de mineração, além de se contraporem aos interesses de outros conglomerados econômicos argelinos, europeus e estadunidenses que tentam expandir suas ações predatórias na região.

Em abril deste ano se realizou na cidade de Tarapoto, no Peru, o VIII Fórum Social PanAmazônico, um dos melhores fóruns que aconteceram desde a sua primeira edição em 2002, em Belém do Pará. Mesmo sem contar com o efetivo engajamento de centrais sindicais, por exemplo, o Fórum de Tarapoto conseguiu reunir milhares de pessoas que realizaram debates sumamente importantes não somente para a região, mas para os povos de todo planeta: financeirização da natureza, mudanças climáticas, combate ao neoliberalismo, Bem Viver, luta contra o patriarcado, os direitos da Mãe Terra, a militarização da região (geopolítica), entre outros, foram alvo das reflexões de ativistas.. Além disso, se realizou o II Encontro de Investigadores(as) cujas reflexões sobre a produção do conhecimento e o necessário diálogo entre os saberes científico e ancestrais/tradicionais, bem como sobre as relações entre a academia e os movimentos sociais trouxeram enormes contribuições ao debate sobre as tentativas do grande capital de controlar a produção do conhecimento em escala global, da expropriação do conhecimento gerado por povos indígenas e comunidades tradicionais.  Aqui estamos debatendo questões de ponta da pauta dos movimentos mundialistas e integramos processos de luta em escala global.

Por outro lado, o movimento camponês tem se deparado com ações regressivas do Estado brasileiro muitas vezes piores do que as implementadas durante a ditadura militar. É terrível chegar a essa constatação, mas é fato. A pena de morte para lideranças campesinas e seus apoiadores é regra geral na Amazônia. A "justiça" acabou de soltar os PMs responsáveis pela chacina de Pau D'Arco. A situação em Rondônia é angustiante. A perseguição no Acre contra o CIMI e as lideranças indígenas que se opõem às "alternativas de mercado" para manter a floresta em pé é uma triste realidade. Mesmo assim mobilizações e ações de resistência pululam na Amazônia brasileira. Isto sem falar nas ações desencadeadas por movimentos sociais em todos os demais países pan-amazônicos e na Guiana Francesa. Nesta, uma greve geral questionou seriamente o poder da metrópole.

Estamos antenados com a conjuntura nacional. Aqui o escracho contra parlamentares e governantes golpistas são frequentes. Em Santarém, indígenas ocuparam a prefeitura e a Câmara de Vereadores para dizerem em alto e bom som: Não ao agronegócio! Não às mineradoras! Não aos portos, hidrelétricas e outros empreendimentos de infraestrutura que destroem os territórios. As mulheres têm sido um dos principais esteios de todas essas lutas que se travam nesta região, demonstrando sua força e contribuindo decisivamente à revitalização dos movimentos sociais.

É verdade que a multidão não tem tomado conta da avenida Paulista ou da Cinelândia? É verdade que as massas neste momento não têm se apossado dos gramados de Brasília para se contraporem às reformas destruidoras de direitos? Sim, é verdade. Isto significa que precisamos importar nuestros hermanos para realizarem a luta social por nós, ou que a sociedade civil está desmobilizada? Não é necessário.

Um fato não tão difícil de se constatar é que os partidos políticos de esquerda perderam muito da sua capacidade de mobilização social. Por sua vez, organizações como as centrais sindicais também enfrentam problemas semelhantes. Enquanto isso há uma profusão de lutas a partir do chão dos territórios. Na Amazônia, alianças estratégicas entre diferentes atores sociais se realizam. Uma nova forma de ação política em rede vai sendo construída. Todos nós amazônidas temos sido conclamados a repensar os nossos pensamentos e nossas ações. O debate sobre o Bem Viver e os Bens Comuns ganham espaço, sem que tenhamos qualquer pretensão de usá-los para substituir o marxismo ou outros paradigmas tão caros a nós da esquerda. Pelo contrário, é um movimento real de rejuvenescimento do fazer e do pensar sob as condições históricas de uma sociedade globalizada hegemonizada pelo neoliberalismo.

A luta social é bem maior do que ocorre no RJ ou em SP. E bem mais rica e complexa do que a vã filosofia de muitos analistas, mesmo do nosso campo político.